Às vezes eu me pego pensando o que eu fazia pra conseguir fazer uma coisa em especial antes. Antes do que? Não sei. Mas antes. Hoje, enquanto eu caminhava pra pegar o ônibus pensei nisso: “o que eu fazia antes, quando tinha muita coisa pra fazer? Que estratégia usava?”.
Eu não sei fazer quase nada sem uma estratégia. Eu preciso de planos. Parte é porque gosto de controle? Sim. Mas parte eu atribuo ao TDAH diagnosticado via vídeos do tiktok (é piada mas é sério). Eu não saio simplesmente fazendo as coisas, eu crio as condições pra isso acontecer. É bem cansativo.
Não dá pra lembrar de tudo, até porque o cérebro não foi feito pra isso. Inclusive um dos grandes ensinamentos que a Thaís me deu foi desse: tirar tudo da cabeça e colocar em uma lista.
Mas até pra olhar a lista a gente precisa lembrar.
Tenho esquecido um monte de coisas, especialmente as pequenas. Não lembro com quem tive conversas, não lembro se já contei aquilo pra’quela pessoa, fico em dúvida se vi tal assunto na aula mesmo, porque não lembro de nada.
Ao mesmo tempo, fico tendo lembranças de cenas que pareciam esquecidas. O poder da memória né? Ou o poder de outras coisas que não sei bem dizer quais são mas que quando a gente quer a gente finge que esqueceu e depois que puxa o fio vem o novelo todo em cima da gente. #psicanálise
Minha vó teve Alzheimer e ver ela perdendo a memória foi uma das coisas mais difíceis de assistir. Especialmente porque eu via ela só nas férias, cada vez eram saltos de memória perdida. Numa visita, ela ficava surpresa cada vez que me encontrava na casa e me cumprimentava e repetia todas as mesmas falas. Dali a alguns meses, nas próximas férias, ela já não me reconhecia.
Não consegui nunca achar graça nessa repetição de falas dela. Pra mim era a própria definição de desespero assistir ela assim, se perdendo.
A memória é tudo o que a gente é, no fim das contas. A gente *é* pelo que a gente armazenou no nosso HD interno, ao longo do tempo, pelo que deixou de armazenar, pelo o que escolheu estar ali – conscientemente ou não.
Se o que sou depende da minha memória, deixar de ser ou mudar depende de fazer escavações na memória. Refazer os caminhos, rever as cenas, dar play, rebobinar, dar replay. Investigar. Entender.
Fiquei fascinada uma vez que ouvi um podcast sobre como a memória é muito mais falsa que verdadeira, muito mais inventada que baseada em fatos reais, que o fato dela ser feita e refeita, pra otimizar os espaços do cérebro, faz as cenas mudarem tanto com o tempo. O podcast falava muito de como investigações policiais são baseadas quase que exclusivamente num dos piores recursos humanos: justamente esse mecanismo falho de armazenagem de informações. (No fechamento desta edição eu ainda não lembrava o nome do podcast, espero colocar ele nos comentários aqui)
Isso me deixou muito pensativa, porque se é tudo inventado, a gente pode simplesmente puxar e dar um novo sentido. Não que seja fácil, eu faço psicanálise há pelo menos três anos e falo (quase) as mesmas coisas toda semana. Mas dá um alívio saber que pode, se a gente quiser, se a gente botar trabalho e intenção.
Um dos meus passeios favoritos é justamente rever coisas que eu fiz, fotografei ou escrevi. Porque a gente esquece. Tem uns anos que comecei a usar um caderno só pra anotar tudo. Na internet onde tudo ganha nome pra virar produto, isso chama “commonplace book”: um livro de lugar-comum. Confesso que gosto da origem do nome e dessa tradução. Bom, mas na prática é isso: um livro ou caderno que tudo o que você tiver pra anotar, independente da área, você anota ali. Eu coloco título e data e anoto. Vez ou outra, procuro algo que anotei ali e é muito interessante porque já fiz 4 cursos, algumas matérias da faculdade (só faço anotações rápidas da faculdade), muitas mudanças na vida, projetos de conteúdo, roteiros de vídeos, anotações das reuniões do clube do livro. Tudo tá no mesmo lugar e, finalmente, estou acabando um caderno (na vida).
Quando revejo anotações, tem vezes que sequer lembro de onde veio o pensamento que anotei. Porque o cérebro não foi feito pra ser uma fonte confiável de memória, ainda que tudo o que a gente seja, seja por causa dela.
Ter esse livro me alivia muito mentalmente, se posso dizer assim. Eu tenho um lugar onde anotar as coisas, por mais que algumas páginas fiquem feias ou bagunçadas. Anoto na mão, fisicamente, com uma lapiseira ou caneta, que faz muito mais caminhos ativos no cérebro que anotar digitalmente. Fica ali, pra eternidade em ser consultada. É como se fosse um diário, mas do fluxo mental. Me acalma porque eu sei que não vou perder também, porque isso (de novo o TDAH) é uma das coisas que mais me cansava: decidir um lugar onde anotar e depois não lembrar onde estava.
(Em outro episódio posso falar como o Notion também me alivia por agrupar tudo da minha vida - exceto essas anotações.)
Acho que a gente precisa não esquecer das coisas. Ou escolher jeitos de lembrar. De lembrar de si. De fazer um livro do lugar-comum de si mesmo. Tem coisas que dói lembrar, mas não dá também pra esquecer, porque o que dói não é a lembrança, mas outras coisas. Deixa doer.
Beijos,
Cristal Muniz
Eu adquiri o hábito de escrever em cadernos, há uns 2 anos, mais ou menos. Desde então, fui preenchendo nos meus caderninhos, frases soltas, inspirações, desabafos, desenhos, recortes... Tava gastando em média 11 canetas esferográficas por ano. Tinha diário em papel (mas como não me sentia segura quanto ao acesso restrito), resolvi escrever em diário virtual, devidamente trancado do público. De uns meses pra cá, vem me inquietando a ideia de escrever um livro de memórias. Assim, anotando no caderno tudo que eu lembro da minha vida (justamente porque tenho ainda uma memória muito boa. Tenho 39 anos, mas me lembro de coisas de quando eu tinha 5. E porque soube recentemente que essa memória vai ficando contaminada aos poucos). Já escrevi um pouco sobre minha infância num caderno, em forma de poema. Agora, quero escrever tudo o que me lembro da minha família, das casas das pessoas, dos trabalhos delas, dos presentes, das festas, das mudanças. E quero muito gravar a fala delas, sobre suas próprias lembranças (tipo um documentário, só que filmado com a câmera do meu celular, rss). Depois, num futuro não muito distante, reunir essas anotações num livro, que vou escrever e mandar imprimir numa gráfica local, com algumas tiragens pra mim, e para algumas pessoas da família. Eu acho muito importante esse tesouro que é a memória. E sinto meio que na obrigação de guardar esses registros.
Obrigada por esse texto. Adorei!
Eu tenho uma memória tão grande e detalhada que considero ela uma espécie de maldição que carrego, junto com o meu potinho de mágoas... Queria ser mais esquecida, kkkcry