Quando eu era adolescente, eu tinha muitas certezas. Foi mais ou menos na base dessas certezas que vivi até pouco tempo atrás, me segurando firme não de teimosia, mas de convicção mesmo. Só que, acho que é coisa da idade, eu comecei a ter muitas dúvidas justamente num momento que eu precisava ter muita certeza, que foi no meio dessa jornada de evitar de produzir lixo. E tive dúvidas sobre ter dúvidas.
Quanto mais a gente estuda as coisas, mais perguntas têm e menos certezas têm. É o princípio do método científico, né, porque precisa ter muita certeza de MUITA coisa pra ter certeza das coisas. Sabe? Isso aconteceu comigo em vários sentidos e isso não ajuda meu trabalho, porque na internet a gente quer resposta pronta. A gente quer receber ordem do que fazer. Quer saber que botão clicar. Que item comprar. Que troca fazer. Que ingrediente usar. Não quer pensar e muito menos ouvir que depende, tem que ver. Deus nos dibre de pensar. E se eu errar?
Eu mudei minhas certezas quando decidi parar de produzir lixo, isso é meio óbvio e provavelmente você tá aqui por causa disso. Mas ter uma plateia de milhares de pessoas me vendo, lendo e questionando me fez ter muito o que explicar. E nem falo isso de um jeito ruim, ter gente te questionando é importante pra pensar mais e melhor sobre as coisas, ir estudar, etc. Foi o que eu fiz. E fui tendo dúvidas. Mais que certezas.
Outro dia inclusive vi um tuíte que ri muito (da categoria #memestristes ou memes sustentáveis, eu precisava catalogar isso tudo) sobre os estágios do ativista:
O percurso é sempre parecido: começar tocando a superfície e pra depois ir mergulhando. A superfície é muito esse foco na atividade individual como solução pra tudo. O fundo do mar é tacando tudo pro alto gritando “a culpa é do sistemaaaaaa” (é assim que me encontro em 2022).
Pra deixar claro - porque muitas vezes não sou rs: - aqui eu quero te falar sobre as coisas que mudaram depois que decidi parar de produzir lixo e tava “estável” nesse lugar, que foi a “primeira” vez que tudo mudou.
1. A culpa
Acho que a primeira coisa que mudou depois que tudo mudou foi a culpa. Eu aprendi que não fazia sentido me sentir culpada quando eu “falhava” porque tava dentro de um sistema totalmente falho, não preparado pra gente não produzir lixo, etc. E também a culpa de momentos que eu escolhia ativamente uma opção “pior”, normalmente porque queria alguma coisa que não sustentava todas as escolhas que tinha feito. Ou às vezes era só porque queria testar mesmo. Ou porque sim. Nossas vontades nem sempre são totalmente justificáveis.
2. A simplicidade nas escolhas
Muitas soluções lixo zero davam muito trabalho pra executar, pra ir atrás, precisavam de mais coisas do que menos. Isso me dava muita agonia, porque sou uma pessoa que gosta de ter menos e não mais. Eu nunca priorizei essas escolhas, pra ser sincera, mas fui diminuindo até esse tipo de coisa que dá bastante trabalho da minha vida. Acho que o lugar onde mais isso impactou foram nos cosméticos, porque comecei a priorizar produtos que me faziam usar só eles ou eles e mais um só ao invés de 4 a 5 produtos pra ter o mesmo resultado, ainda que - vejam bem - eles não fossem tão perfeitos em composição (no sentido de serem 100% naturais), por exemplo, ou de terem embalagem plástica.
Confesso que grande parte disso é a preguiça. Eu acho legal que existam 9348234908 receitas de produtos de limpeza naturais, falando de outro assunto, mas eu efetivamente só uso um. E acho que isso faz parte de viver uma vida mais sustentável, que é de fato precisar de menos coisas.
3. “Como” é mais importante de “o que”
Tenho concluído que na sustentabilidade que eu acredito, o como a gente faz as coisas é mais importante de o que a gente usa ou tem. Agora, me importa muito mais o uso que vou dar pra uma roupa do que de onde ela veio. Parece contraditório, mas ao longo desses anos grandes marcas que tinham grandes problemas melhoraram seus produtos, por exemplo. Hoje eu me martirizo menos em comprar de uma fast fashion (ver item 1) e penso mais se aquela roupa vai ser usada à exaustão.
Isso vale pra roupas, pra cosméticos, pra um montão de coisas que passei a problematizar menos. Ao invés de ficar muito travada em achar o produto perfeito – que nunca, nunca mesmo, existe – eu passei a olhar mais o tempo de uso, a qualidade, a durabilidade, o sentido daquilo na minha vida no fim das contas (eu posso e vou falar mais detalhadamente item por item).
Vejo muita gente focando em achar a roupa perfeita, a maquiagem perfeita, a lâmpada perfeita, focando só nos objetos e esquecendo que o uso que a gente faz deles impacta tanto em alguns casos. A sustentabilidade, pra mim, é mais o quanto a gente cuida dos objetos do que quais objetos estão em nossa posse. Até porque, o dinheiro que a gente tem disponível modifica esses objetos e a capacidade de adquiri-los.
4. Aceitar a incoerência
Ter muitas certezas endurece o corpo. A gente vive como se só tivesse uma lista possível de coisas a fazer, ter, querer. É viver no preto e branco. Mas a vida não é assim, a gente vai e volta, a gente dá círculos, a gente para e troca de caminho o tempo todo e quem diz o contrário já foi com deus faz tempo, acredite em mim. Algumas coisas que gosto ou que mudei de opinião me incomodavam muitíssimo porque me pareciam um poço de incoerência, sendo que eram apenas eu sendo humana e: mudando.
Eu tenho muitos perfumes. Quando eu digo muitos: são muitos mesmo. Eu sempre gostei de perfume, aprendi com minha mãe. Quando comecei o projeto, tinha uns três e fui usando até acabar. Comprei uns que “eram mais naturais” e segui usando, nunca consegui ficar sem. Depois de ter perdido o olfato por causa da covid e ter ficado dias sem, semanas com ele alterado, resolvi passar perfume todo dia pra lembrar que o olfato tava funcionando e comecei a comprar perfumes que eu sempre gostei e sempre quis ter. Agora tô nessa: tenho muitos perfumes. Não tem nenhuma justificativa racional pra isso: sou só uma pessoa, podia usar um de cada vez, podia procurar opções naturais, são caros, muitas vezes perfumes são alergênicos. Eu sinceramente briguei bastante comigo mesma sobre isso, mas assumi que é essa (umas das) minha(s) incoerência(s).
Tudo bem que, aqui, convém falar que comprar é um resultado de muitas coisas nesse mundo capitalista e, muitas vezes, a gente preenche buracos emocionais com as compras. Por isso, apesar de não me culpar e aceitar minhas incoerências, eu também tento – na terapia – entender de onde vêm minhas vontades e meus desejos, pra ser honesta com eles e ver se é realmente a compra o que eu quero ou algo diferente.
5. Nem toda necessidade é pragmática
Quando a gente fala de sustentabilidade, a gente costuma pensar na função funcional, no pragmatismo só e demonizar outras características dos objetos como a estética, o simbólico, o subjetivo. E acho que isso faz com que muita gente 1) se sinta muito culpado e 2) se sinta infeliz e numa encruzilhada noutras vezes. Nós somos seres humanos, somos animais para os quais o simbólico é importante, a estética faz parte da nossa construção como ser, da nossa identidade. Esquecer ou tentar renegar isso, pra mim, é fingir que somos computadores, racionais, que podemos seguir a lógica pra tudo.
Muito se fala de comprar roupas atemporais, por exemplo, como se a gente não estivesse em constante mudança. Nós não somos atemporais, como que as roupas farão sentido pra sempre se a gente vai mudar? Nossos contextos mudam: a gente pode fazer faculdade e depois terminar; pode ter filho pequeno e ele crescer; pode não ter pets e depois ter; pode começar a gostar de ler; pode mudar de emprego para um que é mais longe ou outro que exige um tipo de roupa diferente ou de repente, trabalhar de casa; pode mudar de carreira e deixar de ser executivo pra fazer pão.
Tudo isso pra mim mostra que tentar buscar regras rígidas sobre o que precisamos ou não ter não faz o menor sentido. A gente muda, ainda bem que muda, e os objetos que nos acompanham vão mudar junto, não tem muito o que fazer. Ao mesmo tempo que nem toda necessidade é pragmática. Ninguém (ou quase ninguém) ficaria feliz em uma casa toda branca, com o mínimo do mínimo de coisas para sobreviver (só os the minimalists, como eu reclamo aqui). A maioria de nós pendura coisas nas paredes, põe tapetes na sala, compra lençóis estampados, louças coloridas, pendura e coloca coisas que não tem nenhuma função a não ser deixar a casa bonita e aconchegante. E isso é uma baita função, vamos ser honestos!
Entender que nem sempre a necessidade que precisamos preencher é a da função ajuda a gente diminuir a culpa e aceitar algumas incoerências, entendendo que coisas que decoram a casa, o guarda roupa, a vida em geral – se nos deixam feliz – estão cumprindo o que prometem.
Eu tenho escrito aqui o quanto eu mudei e o quanto especialmente esse período da pandemia foi difícil pra mim. Acho que pra mim, assim como pra muita gente, foi um catalisador de processos internos que aconteciam lentamente e, quando a gente se viu nesse caos com chance de morrer apenas por ir no mercado, tudo explodiu. Eu tentei segurar, mas fim do ano passado foi como um tsunami lavando derrubando empurrando tudo o que tinha na frente. Eu ainda tô limpando os escombros.
Escrever isso aqui, agora, importa pra mim porque queria registrar – de novo, em partes – que mudei. E mudar não é fácil na internet.
A última vez que eu comemorei meu aniversário com meus amigos, numa festa, eu tava fazendo 28 anos. Semana passada, comemorei 31. Comemoro que tô viva, antes de mais nada, mas comemoro também que aceitei abaixar a guarda, duvidar das minhas certezas e fazer novas perguntas. Tem sido quase a sensação de um tsunami, mas como se dessa vez o mar tivesse lavando e limpando tudo, deixando tudo transparente, claro, visível.
Eu ainda tô estruturando as minhas novas grandes verdades, digamos assim, cês sabem que aqui tudo demora que eu cozinho tudo em fogo baixo. Mas eu volto contar.
Beijo,
Cristal Muniz
caramba cristal
obrigada por essa dose deliciosa de leitura!
Estamos todos em processo, a diferença é que alguns estão conscientes disso e outros não estão (ou não querem estar). Me senti acompanhada ao ler seu post Cristal. Seguimos! <3