Por que precisamos automatizar a vida?
Sobre cansaço, manutenção, cuidado e meu vício em vídeos de limpeza
[esse texto foi escrito e enviado em 01/09/2021 para os assinantes do catarse, que deixou de existir - estou colocando os textos aqui no Cuca Fresca - e decidi deixar esse aberto pra todos e não só os assinantes, assim como alguns outros textos que virão, porque gostaria que o máximo de pessoas lesse]
Fiquei pensando um tempão em o que escrever na minha versão do meme “era pra ser só 15 dias e eu…” até lembrar que passei a assistir canais e mais canais de vídeos de limpeza, faxina, limpeza de carro, seriados sobre pessoas que não arrumam a casa (pra ver elas sendo limpas e arrumadas, claro) e etc. Eu sempre gostei dessas coisas, mas durante esses 15 dias e mais um ano e meio de pandemia, ver isso me traz paz porque é gostoso de ver, motiva pra eu fazer em casa e mais importante: me desliga do mundo real. Até aí, tudo bem.
Mas eu percebi uma movimentação grande das pessoas falando sobre limpar a casa e vi como no começo da pandemia choviam posts (no twitter, onde moro) de pessoas perguntando se valia a pena um aspirador robô e, se sim, qual comprar. Não foi só uma observação empírica minha, na verdade a venda de aspiradores do tipo robô cresceu 802% no começo de 2020.
Mais recentemente, eu tenho visto um aumento de postagens sobre lava louças. Outro dia vi um vídeo no tiktok na minha “for you” que a pessoa mostrava como a louça super suja saía limpinha da máquina e que tinha sido a melhor compra. Deu até na Namaria uma reportagem sobre uma moça que apelidou a máquina de lavar louças dela de “marida”. Eu já queria uma lava louças fazia anos, mas finalmente fui atrás e achei uma usada (praticamente nova) de um casal que não se adaptou, não gostou e: comprei.
Um dos pontos que o livro “Resista: não faça nada” da Jenny Odell mais me impactou foi sobre a manutenção. Ela traz inclusive trabalhos de uma artista, a Mierle Laderman Ukeles, cujos trabalhos eram muito sobre a manutenção, inspirado em ela ter se tornado mãe e visto quão repetitivas as tarefas se tornam. Historicamente, quem faz esse trabalho de cuidado na sociedade somos nós mulheres. Não à toa eu gosto de ver vídeos de limpeza e são sempre mulheres neles, inclusive as que vivem na mesma casa que seus companheiros.
Eu fiquei pensando um pouco sobre isso e sobre essas máquinas e produtos que aparecem pra automatizar certas esferas da nossa vida. Me incomoda mais, por exemplo, o motivo pelo qual eu ou qualquer outra pessoa quer e precisa ter uma máquina para ajudá-la em um serviço relacionado à própria vivência do que o produto em si. Os motivos são, normalmente, querer economizar esse tempo para outra coisa. Muitas vezes, outra coisa “produtiva”. Eu, nas últimas semanas, pensava (e até falava pra alguns amigos) que eu não ia ter tempo pra lavar a louça, de tanta coisa de trabalho ou da faculdade que eu tinha pra fazer (o que justifica meu sumiço).
Eu comprei o aspirador robô pra poder fazer outra coisa (trabalhar, sejamos sinceros) enquanto ele limpa o chão. Comprei a lava louça não só porque detesto lavar louça desde sempre, mas também porque não suportava ficar em pé lavando louça enquanto tinha algum email pra responder ou algum trabalho de faculdade pra terminar (eu acho que pareço mais tranquila do que de fato sou). Tanto é que eu só lavo louça fazendo outra coisa (consumindo algum tipo de conteúdo, inclusive aulas da faculdade) desde antes da pandemia. E eu sei que não sou a única.
Por que a gente precisa automatizar tanto a vida? A gente pode cair num simplismo de dizer que está buscando mais conforto. Mas as máquinas ainda não resolvem três problemas: 1) que a gente trabalha demais e, cada vez mais; 2) que a nossa sociedade valoriza a produtividade e a performance, então economizar tempo aqui serve pra realocar ali em mais uma aula, curso ou horas trabalhadas; e 3) que a gente gasta tempo demais na internet e nas redes sociais “fazendo nada” e que esse tempo economizado facilmente vira scroll de instagram, tiktok, YouTube e twitter.
Meus dois centavos sobre isso começa em que quando confrontados com a realidade mais de perto, no começo da pandemia, muita gente que ficou em casa pensou em terceirizar o trabalho da manutenção da casa agora pra robôs ou máquinas, já que não era possível receber uma mulher em casa para isso. Claro que aqui eu tô exagerando um pouco, mas fiquei bastante pensativa sobre porque eu e todos nós não passamos a valorizar ou até enxergar esse trabalho, tão invisível, que pessoas fazem e, no lugar, valorizamos máquinas. Ainda não é considerado trabalho.
Engraçado que a própria Mierle fez uma exposição que chamava “Manifesto pela Arte da Manutenção” em que ela se propôs a viver no museu com marido e bebê e seu trabalho vivendo seria o trabalho da exposição em si. Ou seja, cuidar da criança, da casa, fazer comida, lavar louça seria o trabalho que ela ia expôr. Acho que a gente precisaria tomar esse choque de realidade pra lembrar quanto trabalho existe sendo feito e quanto as coisas só caminham porque tem pessoas cuidando.
Outra coisa que andei pensando e foi ser vizinha na minha cabeça do resto desse assunto é como limpar os espaços e ter uma casa limpa & organizada tem a ver com saúde mental. Se você performa juventude como eu e usa o tiktok, já deve ter visto pessoas fazendo séries de vídeos que chamam “limpando meu quarto da depressão” (em inglês: cleaning my depression bedroom). Normalmente são quartos cheios de coisas não muito identificáveis, mas conforme os vídeos caminham, percebemos que a maioria das coisas é lixo: garrafinhas, copos, pacotes. Depois de um tempo, quando as roupas sujas são empilhadas num cesto, os lixos jogados em sacos pra fora, as pessoas aspiram, passam pano e arrumam o quarto. O que todos esses vídeos tem em comum é que as pessoas por trás sinalizam que estão com depressão e que o quarto ficou daquele jeito porque não pôde ser cuidado.
Depressão é uma doença paralisante, mas outras doenças mentais também atrapalham nosso “bom funcionamento”. Se a gente precisa parar de cuidar da casa, quem vai fazer isso? Vê como o cuidado é tão importante? A manutenção das casas, das roupas, das louças, das comidas, dos parques, das ruas, das obras é tão importante ou até mais que a criação dessas coisas, mas a gente foca apenas no crescimento, no aparecimento, na construção das coisas.
Uma pessoa que comecei a seguir por causa dos vídeos de limpeza é a Auri Katariina, uma finlandesa que se diverte muito limpando e faz vídeos engraçados falando “ah que ótimo, tá muito sujo, vou me divertir muito limpando!”. Ela hoje limpa a casa dos seus seguidores de graça, é inclusive um bordão. Em muitos casos ela menciona questões de saúde mental sobre quem pediu ajuda (quase sempre anônimos) e me tocou bastante que ela gosta de salientar que ela não julga as pessoas, ela faz isso porque gosta de ajudar e sentir satisfação em levar esperança pra aquela pessoa. Em alguns vídeos ela conta algumas histórias que são sempre muito parecidas: teve um problema ou uma crise de saúde mental e ficou meses sem conseguir praticar os trabalhos de manutenção da própria casa – às vezes existir já é um trabalho imenso.
Voltando pro aspirador robô do começo do texto, eu acho que essas coisas são todas muito interligadas e fazem todo sentido. Mas elas também são ou podem ser alegorias para o cuidado com o meio ambiente, que é de fato um trabalho de manutenção antes de mais nada.
Fico pensando em como esses trabalhos de manutenção e cuidado tendem a ser desvalorizados não só em casa, mas também nas cidades. A gente não percebe o trabalho de limpar as ruas, podar as plantas, aparar a grama dos parques especialmente se o trabalho tá sendo bem feito, o que é bastante irônico. É igual quando a gente se muda da casa da mãe e percebe quão rápido as coisas ficam sujas quando você não está constantemente limpando-as (como costuma acontecer em casa de mãe - olha eu reforçando que quem cuida é a mãe, mas é que no meu caso eu morava só com ela e não com o pai).
Inclusive isso me lembrou que eu me debati muito com o cuidado da minha casa quando fui morar sozinha porque não encontrava um modelo que parecia funcionar. Limpar a casa no fim de semana não basta, ela fica suja no outro dia (inserir foto dos meus gatos e cachorros rs). E eu descobri o método FlyLady que é basicamente um método que prevê que você faça algo todo dia, com as coisas de cada dia sendo repetidas, pra depois de um tempo, sua casa estar sempre em ordem. Tem algumas regras como: destralhar a casa sempre, aos poucos até você chegar a não ter tralha em casa; ir dormir sempre com a pia de louça limpa; usar um timer e fazer as tarefas por *só* 15min, não mais que isso.
Na época que eu descobri a FlyLady eu achei sensacional, porque de fato a gente precisa fazer algo todos os dias pra casa ficar funcional. Seja guardar as coisas no lugar, seja lavar louça, seja arrumar a cama. É um método que literalmente ensina isso: manutenção e cuidado precisam acontecer todo dia, mesmo que pouquinho, num movimento constante.
Eu não sei se tenho nenhuma grande conclusão depois de ter falado tanta coisa, mas enquanto enchia a máquina de lavar louça ou ligava o aspirador robô nos últimos dias (no processo de escrever isso tudo, que durou mais de uma semana) fiquei pensando que máquina ajuda, mas não substitui. Eu ainda preciso encher a máquina e ligar o robô. Eu ainda preciso me envolver no cuidado. A gente ainda precisa de gente.
Beijos,
Cristal Muniz
Caramba, eu simplesmente amei esse texto, primeiro pq somos charás (mas eu sou crystal haha), segundo por que eu também detesto desde sempre lavar louças! Uma máquina de lavar louças é meu sonho de consumo desde a infância (no início dos anos 2000 eu já dizia que o primeiro eletrodoméstico que eu compraria pra minha casa própria seria ela).
Mas os anos foram passando e continuo na mesma casa... E a limpeza dela agora é minha batalha diária. Após o surgimento do robô aspirador, também fiquei namorando um... Mas devido ao custo (de ambos), as louças são lavadas com luvas (senão, já era a pele das mãos) e o chão limpo com aspirador convencional e mop... Se fico um dia sequer sem limpar, já era, no dia seguinte a limpeza é mais demorada e cansativa, e aí eu fico triste em dobro... Realmente, as atividades de cuidado, seja na casa, de si mesmo e do meio ambiente, devem ser repetidas dia à dia. Mas bem que essas máquinas ajudam, hein? Quase um trabalho em equipe.
Super me identifico. Sendo filha, mãe, esposa e ainda de casa mantendo a vida profissional viva como bióloga atuante dou nome aos meus ajudantes eletrônicos e tenho em pedestal a minha ajudante humana que embala meu bebê enquanto envio os relatórios dos clientes. Quanto mais desentulho a casa mais espaço para a vida se apresenta. Adora seus textos, sempre trazem uma reflexão valiosa para autoavaliarmos as nossas prioridades. Keep going.