No caminho pra minha academia passo por uma placa enorme escrito “revitalização das praias do riso, do meio e da saudade”. Logo depois de ver a placa pela primeira vez, apareceu uma máquina gigante, parecia um guindaste, não sei explicar que máquina era essa. Um tempo depois, enormes cilindros que eu conclui serem de cimento tão ali, enfiados com ajuda desse “guindaste” na areia. Não sei porquê, a placa mudou. As obras continuam.
Passei algumas vezes ali me perguntando o que significa revitalizar uma praia como as do riso, do meio e da saudade. Essas praias são praias pequenas, em um bairro mais residencial porém com uma orla cheia de comércios – em especial, restaurantes. Muito raramente, as placas que mostram o estado de balneabilidade da água mostram os dizeres “própria para banho”, ou seja: são praias poluídas.
Revitalizar uma praia parece pra mim quase um oxímoro: como se revitaliza algo natural? Pelo andar da carruagem, não parece ser um processo de despoluir. Muito menos de limpar. Mas sim de criar uma orla nova, uma calçada maior, algo do tipo.
Fiquei muito pensativa nas vezes que passei e vi isso iniciando, acontecendo, aos poucos aparecendo o que de fato era essa obra de revitalização.
No livro “Resista: não faça nada” da Jenny Odell, a autora fala sobre como nossa ideia de progresso tá ligada a uma ideia de construir e colocar coisas novas no mundo:
“Nosso ideal de progresso está tão ligado ao conceito de colocar algo novo sobre o mundo que parece um contrassenso associá-lo à destruição, à remoção e à reparação. Essa contradição, no entanto, revela uma contradição ainda mais profunda: a de que a destruição (de ecossistemas, por exemplo) era vista como uma construção (de barragens, por exemplo). No século 19, os conceitos de progresso, produção e inovação consideravam a terra como um espaço em branco, um grande gramado americano que, para ser cultivado, os habitantes e sistemas que o povoavam até então deveriam ser extraídos como ervas daninhas. Se reconhecermos honestamente tudo o que havia aqui antes, cultural e ecologicamente, entenderemos que o que era considerado construção se tratava na verdade de destruição.”
Lembro quando li esse trecho que me caiu uma ficha imensa, sobre como essa valorização do que é construído faz a gente não considerar que coisas podem ser destruídas para o bem. A destruição é sempre associada a um viés negativo, como se a gente devesse manter tudo o que foi colocado em pé.
Os meses foram passando, os pilares começaram a ser recobertos por madeiras. Não foi rápido, mas aos poucos as praias do meio, do riso e da saudade foram ganhando uma extensão da calçada, um deck.
Como o parquinho que costumava levar a Filó passear entrou nessa revitalização, comecei a ir com ela numa das praias. Num dia, indo até o final e voltando, passei por diversas águas-vivas mortas na areia. Os pássaros rondavam os pescadores que, dentro da água na altura da cintura, jogam a rede de pesca.
Nem tudo que a gente constrói, vinga pro bem. Às vezes a gente coloca os tijolos, cimenta, faz tudo da melhor maneira só pra descobrir que o terreno embaixo era areia movediça e precisa destruir tudo e começar de novo.
Quando li o livro da Jenny, pensei na hora em Belo Monte: todo mundo alertou que era uma péssima ideia, construíram e hoje tudo o que alertavam tá aí pra quem quiser ver. Mas, agora, eu lembrei dessa analogia enquanto pensava sobre a minha vida pessoal e como construí algumas Belo Montes nos últimos tempos. A teimosia de não querer destruir algo que tá em pé, construído, mesmo que para o mal, talvez seja um mal de interpretação de mundo. De gente que não admite recomeçar e refazer.
Bom, não que exista um mal x bem aqui, não me entenda mal (pelo amor de deus preciso parar de usar a mesma palavra), mas quando a gente passa por anos de autoanálise e saber o que quer e o que não quer, isso é o terreno pra construir algo. Não dá pra fugir quando o terreno é ruim pro objetivo que você tem, é preciso prepará-lo primeiro. Ou buscar um novo lote.
Mas voltando ao assunto da sustentabilidade: gosto muito de olhar pras palavras que as pessoas usam pros projetos que supostamente falam de sustentabilidade. Ou mesmo as palavras que denotam progresso, como essa placa falando que as praias seriam re.vi.ta.li.za.das. Eu esperaria que não tivesse mais esgoto chegando no mar, que a areia não ficasse cheia de lixo sempre, que a placa que indica a qualidade da água permanecesse dizendo “própria para banho”. O deck ficou legal e tornou mais amigável o uso desse espaço público, isso eu tenho que admitir, mas então porque não chamar pelo nome correto, que seria algo como reforma ou transformação?
Às vezes eu imagino vocês lendo meus textos e pensando “meu deus, como essa mulher fica pensando essas coisas?”.
De qualquer maneira, voltando à minha vida pessoal, esbarrei nesse tuíte aí acima e achei poético porque estava pensando em como finalizar esse texto e achei adequado falar de pulsão de morte. Não querer que as coisas mudem, mesmo que a gente sofra com as coisas, me parece bastante humano. Mais porque, no caso, eu vejo todo mundo repetindo isso, e talvez venha daqui a nossa dificuldade em destruir barragens (literalmente, aqui não é metáfora).
Coincidência ou não (claro que não, o tiktok lê tudo que eu faço) vi esse tiktok outro dia que, caso você não queira ver, é assim: a menina fala que tá usando a semanas um demaquilante que arde o olho dela e que não compra um novo porque ainda tem. Aí ela faz o que? Taca tudo no lixo e diz que às vezes a gente tem que fazer isso mesmo pra sair daquela situação e, que muitas vezes, situações mais ou menos ruins são piores da gente sair porque são ligeiramente confortáveis.
Então vocês fiquem aí com assunto pra terapia essa semana.
Voltando pra revitalização, andei sumida porque operei o nariz. Arrumei desvio de septo, tirei cornetos, passei plasma de argônio no tecido, refiz válvula do nariz, limpei seios nasais, reconstruí passagens: uma verdadeira revitalização do meu nariz que, até esse momento da minha vida servia basicamente pra apoiar o óculos.
Surpreendentemente, eu agora respiro pelo nariz. Eu não aprendi direito ainda e talvez precise até de fonoaudióloga, mas meu médico só vai dizer isso daqui um mês.
O processo de fazer a cirurgia e me recuperar apertou TANTOS gatilhos, mas hoje eu queria apenas dizer que um deles foi de se entender como algo que pode melhorar também. Veja, eu assisto muito vídeo de cirurgia ortognática, transplante de cabelo e coisas de dente - por que? sei lá, o tiktok me mostra - e só depois de ter feito a minha eu percebi como a gente pode arrumar coisas que pioram nossa vida, desse jeito bem pragmático mesmo. Ou que a gente queira mudar né, nem sempre pioram. Até pensei em ir atrás da cirurgia de miopia, pra ver se posso fazer.
Será que tem a ver com a pulsão de morte, essa ideia concreta de não ter pra onde correr, ter que aceitar o destino da genética do nariz ruim, por exemplo? Eu acho que tem um pouco da minha criação, porque eu tenho 31 quase 32 anos e ainda me pego percebendo como certas coisas são… simples. É só ir e fazer. Mas é que eu tô abrindo a trilha da vida sozinha, com um facão muito mequetrefe, com pouquíssima ajuda, então fica tudo mais difícil mesmo, é horrível.
Quem é que não gosta de estabilidade né? Depois de operar eu olhei em volta e disse: CHEGA de projetos de mudança esse ano. CHEGA. Não tenho como lidar. Vocês tem acompanhado que fui mudando um montão de coisas, agora imagina quanto trabalho mental eu não tenho feito nos últimos anos pra: deixar de ser lixo zero e falar disso, mudar meus canais de comunicação, fazer uma faculdade, terminar três relacionamentos, mudar meu guarda roupa, mudar eu em mil sentidos #cansada. Caso você queira imagens, perceba:
E agora ainda respiro pelo nariz!!!! O que será que me espera???
Sempre que penso nessas coisas, penso numa cena clássica que mora na minha cabeça: um monge budista coloca, cuidadosamente, areias coloridas no chão, desenhando uma mandala cheia de detalhes. Passa dias fazendo isso, com o maior cuidado e esmero. Assim que a mandala está pronta, ele varre tudo. A primeira vez que vi esse vídeo ou ouvi essa história fiquei horrorizada (não sei achar, desculpa, nem no meu cérebro se foi vídeo ou ouvi). Senti uma dor física quando ele destrói tudo. Fiquei indignada, fui olhar o porquê daquilo. A resposta era que esse ritual acontece pra eles lembrarem da impermanência da vida. Isso me pegou tanto que, não sei quantos anos fazem, ainda penso de vez em quando na mandala sendo destruída.
Encarar coisas como permanentes, seja nossas vontades sejam construções sejam verdades sejam compreensões, é que é o problema. Porque a vida é um sopro. Ou um soco. Não queria ser poética, mas é que a vida é isso mesmo.
Um beijo,
Cristal Muniz.
Acho que, se você gostou desse texto, vai gostar desse da Aline Valek sobre a peça Esperando Godot:
“O que não acontece talvez seja o melhor que poderia ter acontecido naquele momento. O que não acontece deixa um espaço vazio. É bem diferente do que eu esperava, mas recebo como um presente. O vazio é uma espécie de liberdade. Dá para dançar dentro dele. O nada, afinal, pode ser alguma coisa.”
Sensacional o texto!
👏👏👏❤️❤️❤️