Às vezes, quando combina de a maré estar cheia com a quantidade de água no mar estar maior porque choveu muito, a quadra do parque onde levo a Filó passear, inunda. O mar sobe e transborda os murinhos que servem mais para delimitar espaço que impedir entrada – de alguém, de algum bicho ou da água – cobrindo a grama do campinho. Na última vez que isso aconteceu, chovia muito havia dias ou semanas. Deve ter sido na primavera. Ou no outono. São as estações que mais chove por aqui. Eu descobri isso não porque vi a água transbordada, mas o que acontece depois: a grama toda seca, o cheiro de peixe no campinho, lixos pequenos enroscados nas plantas rasteiras que dividem o espaço com a grama, alguns ossos ou espinhas.
Pensei nisso outro dia, de noite, enquanto esperava a Filó e olhava ao meu redor. O vento constante e gelado, o cheiro de mar, a rua vista do outro lado, como se de frente pela posição que fica o campinho, a árvore mexendo com o vento, as estrelas que nunca tinha reparado que apareciam. A grama já tinha se recuperado, estava verdinha, foi aí que pensei nas vezes que ela não esteve. Reparei que haviam trilhas molhadas na parte central do campinho, onde tem areia e não grama, porque algum vizinho plantou gramas justamente no desenho de um campo de futebol. E rega as gramas para que elas peguem. Tenho lá minhas dúvidas se elas vão crescer, mas as da lateral estão firmes. Mesmo depois de terem secado por causa da água salgada do mar. Eu ia dizer morrido, mas se voltaram é porque não morreram, né?
Tenho muita dificuldade de me imaginar morando longe do mar. O cheiro salgado, os ventos, os barulhos são parte de mim tanto quanto eu própria. Parece besteira, às vezes, pensar isso, mas toda vez que dou essa volta com a Filó e cheiro o mar, inspiro fundo umas vezes e penso “vai ficar tudo bem”. Muitas vezes que estive com medo, triste, angustiada, sem saber o que fazer, eu peguei a guia da Filó, coloquei nela e fui andar até onde o vento traz o cheiro do mar no meu nariz, no campinho.
Sinto que sentir o mundo me aterra no mundo. Me lembra que estou em pé na terra. Que sou uma pessoa que sente o vento na pele. Que existem outras coisas ao meu redor. Que um cachorro olha grato pra mim porque está cheirando o mundo por ter minha permissão de sair de casa. Que faço parte do planeta.
Achei nos rascunhos um texto que o título era “saudade” e não lembrava o que tinha escrito. Cliquei pra ver e estava em branco. Eu não tinha escrito nada. Fiquei curiosa, porque não me lembro mais o que eu queria dizer quando nomeei esse texto que não existe mais. Talvez a saudade seja exatamente isso: um buraco. Um vazio. Um espaço que não existe mais e que você precisa ficar imaginando o que tá se passando ali. Ou o que esteve ali.
Tem coisas que parecem pedaços da gente. Ou que a gente escolhe como nossos pedaços. Eu sou o que eu escolho ser, por isso posso mudar minhas escolhas.
Meu ponto aqui é que talvez eu lembre de quem eu ia escrever quando escrevi “saudade”. Era muito difícil pra mim me imaginar morando longe dessa pessoa, mas morei. Era muito difícil imaginar minha vida sem essa pessoa, mas vivi. Sinto que às vezes, assim como a maré precisa estar cheia e ter chovido bastante, a gente precisa de algumas condições pra se dar conta de certas coisas pra que a água transborde. Às vezes também me pego pensando que talvez a ausência seja mais presente que a presença, porque a ausência existe mais. Um buraco é maior que um não-buraco. Faz sentido?
“Gente certa é gente aberta
Se o amor me chamar
Eu vou”
Mas meu deus, como eu senti saudade nesse tempo que tava longe. Tinha dias que era pouco. Tinha dias que era muito. Tinha dias que eu tinha raiva de lembrar e ter saudades. Outro dia, quando eu tava conversando com uma amiga, ela me cortou e disse “nossa, como você ama esse menino né?”. Me pegou totalmente desprevenida, ainda que eu saiba que sim, meu deus como amo esse menino. É por isso que, de novo, não me imagino vivendo sem ele. Eu olhei, analisei, escolhi e decidi que sim, ele vai ficar comigo na minha vida do jeito que couber. Combinar lua cheia e muita chuva não acontece todo dia, a gente tem que saber reconhecer quando a água transborda e guardar essas pessoas com a gente do jeito que der.
Bom, começou a tocar essa música agora, então termino com ela:
Today you’ll make me say that I somehow have changed
Today you look into my eyes, I’m just not the same
To be any more than all I am would be a lie
I’m so full of love I could burst apart and start to cry
Bom, se a gente quiser, a gente pode fingir que esse é um texto sobre sustentabilidade: crise climática e água transbordando nas cidades. Mas só se vocês quiserem, por mim não precisa. Rs.
Fui atropelada (figurativamente!) por ter ido pra São Paulo e com o início das aulas presenciais, por isso não apareci tanto nas últimas semanas aqui – nunca sei se devo me justificar pela minha ausência, me sinto presa no neoliberalismo ao mesmo tempo que gosto de avisar vocês que se não estive aqui é porque tive motivos importantes – mas estamos de volta com esse texto que sei lá, viu. É isso aí, faz parte do Cuca Fresca ser mais que só sustentabilidade, porque eu avisei vocês: eu sou mais que isso.
Tem mais textinhos vindo aí, vou programar alguns favoritos do Catarse e também na antiga newsletter do blog pra entrarem aqui aos poucos.





ai como usei essa frase no meu nickname de msn!!! "I’m so full of love I could burst apart and start to cry"
o mar é muito poderoso na gente, né, amiga. quero saber quem que tu ama tanto, vou no zap fofocar
Amei o texto e essa ideia dos sentimentos ligados a água. Tenho transbordado também e observar ao meu redor, as outras vidas, coisas que estão ali me tiram da minha cabeça e de toda a ansiedade dos "se" e "porque".