Ter uma coisa só
Ou: simplificando e diminuindo as coisas no mundo físico e digital, a começar essa newsletter
Eu tenho uma amiga que a gente se conhece desde que tínhamos uns cinco anos e ela sempre foi muito impactante em mim. Não exatamente ela mesma, mas talvez mais a imagem dela que eu criei pra mim. A família dela era muito diferente da minha e isso sempre me encantou muito. Uma das coisas que me deixava muito impressionada (e penso até hoje, por isso que tô aqui escrevendo sobre) é que ela sempre tinha uma coisa só de cada objeto.
Explico: na família dela, eles esperavam até poder ter exatamente o que queriam (o tênis x ou a coisa y) pra ter exatamente o que queriam e só. Mas era uma escolha mesmo, ter exatamente o óculos que ela queria ao invés de vários que não eram exatamente o que ela queria. Isso sempre me fascinou, porque na minha família nunca foi bem assim. Mas eu prefiro e escolhi a opção dessa minha amiga, ainda que nem sempre consiga praticar ela.
Eu achava muito impressionante a força de vontade ou a paciência de esperar, porque eu me remoía por dentro por não ter paciência. Talvez ela também, mas na versão que eu criei dela: não, ela é plena e objetiva quanto a isso (se ela tiver lendo, certeza que tá rindo). Isso tem a ver com uma coisa que penso o tempo todo, que é sobre as coisas que tenho, quero ter ou quero deixar de ter.
Tem gente que quer ter muitas coisas, várias opções da mesma coisa, eu quero ter uma coisa só. Um só óculos. Um só casaco de inverno. Uma só bota. Um só jogo de panelas. Sabe assim? Eu acho que ter menos coisas me ajuda a pensar menos nas coisas. Se você só tem um perfume que você ama, você usa só ele. Se você tem diversos perfumes, precisa decidir a cada dia qual vai usar.
Vira-e-mexe eu olho pra minha casa e quero jogar tudo fora. Tempo atrás passei uns dias num airbnb e lembrei da sensação boa que é ficar em um hotel: não tem nada, mas tem tudo que você precisa. Não tem tralha, não tem aquelas coisas que você precisa enfiar num canto, não tem as coisas que você não sabe o que fazer com, não tem minha pilha-eterna-de-uma-mente-sem-lembranças de resíduos variados que preciso descobrir onde descarta & levar até lá (nota: um dia eu falo sobre isso).
Essa casa que fiquei era pequena, de madeira, tinha todos os utensílios básicos de cozinha, de cobertas, toalhas, mas também tinha vários quadros, um móbile de peixinhos na sala, conchas no parapeito do espelho no banheiro, cortinas, cestinhas pra guardar coisas, almofadas de besouro e passarinho, um joguinho de pratinhos pra acomodar chaves e coisinhas pequenas em formato de vitória-régia (ou algo do tipo), passarinhos de madeira presos à luminária da mesa de jantar. Mas era uma casa vazia. Minimalista.
Eu não gosto da estética do minimalismo como tudo branco e estéril, essa coisa “nórdica” que empurram pra gente como bonito quando nossa expressão estética latinoamericana é colorida, cheia de texturas, cheia de referências (inclusive já passei 28min falando sobre isso nesse vídeo rs). Mas eu gosto muito da ideia de ter só aquilo que a gente precisa ter e acho que nisso mora também o “ter uma coisa só”.
Esse é um exercício que sempre pratiquei, mas que depois de começar a pensar soluções pra reduzir meu lixo, também se intensificou porque ter menos coisas é produzir menos desperdício. Eu tô sempre e constantemente olhando mas minhas coisas e pensando no que não faz mais sentido na minha vida.
E de fato é uma tarefa que nunca acaba porque a nossa vida não é estática. A gente não decide as coisas e permanece nesse lugar pra sempre. A gente tá constantemente mudando de ideia, aprendendo e ainda bem. Mas, por isso, a gente precisa olhar pras coisas o tempo todo num exercício constante de se perguntar “isso faz sentido pra mim?” e nesse exercício que eu faço muito, porque tô sempre incomodada, eu botei pra pensar as coisas que eu produzia também (além das coisas que eu tinha) e decidi diminuir.
“Tudo permanece, mas muda, pois o de sempre se repete, perecível, no novo, que passa rapidíssimo.” - Bartleby e Companhia, do Vila-Matas que o Nathan compartilhou
No livro Cidade Solitária, a Olivia Laing fala da obra de diversos artistas, seus métodos e suas vidas pessoais. É um livro sobre solidão e como ela é representada pela arte. Em dado momento ela vai falar do Henry Darger, um artista que era tão solitário que só se descobriu sua obra após sua morte, quando foram limpar seu quarto. Ele trabalhava na equipe de limpeza de um hospital e, por óbvio, não tinha muito dinheiro. Ele era meticuloso e ordenava a matéria-prima (figuras recortadas de diversos lugares como revistas e cartões) pras suas obras por categorias, em envelopes com descrições escritas neles para identificação.
Ele trabalhava com repetição, reproduzindo com folhas de carbono certas imagens. Em cerca de 1944, descobriu que podia transformar imagens em negativos fotográficos e reproduzi-los infinitas vezes no processo de ampliação. A autora então nos lembra que ele nunca teve muito dinheiro e isso era muito caro pra alguém que chegou a precisar do Seguro Social e fala:
“Nada atesta mais as prioridades de uma pessoa do que o modo como ela gasta seu dinheiro, particularmente quando não possui muito. Cachorros-quentes no almoço, implorar a seus vizinhos por um sabonete de presente, mas 246 ampliações de crianças, nuvens, flores, soldados, tornados e incêndios, para ele poder incorporar a real beleza e os desastres a seu mundo irreal.”
Me lembrei do Van Gogh. Minha mãe é professora de artes e tinha em casa uma coleção de livrinhos infantis sobre os grandes pintores, uma coleção meio didática mesmo. Era uma versão bem resumida da vida de cada um deles, as principais obras e umas tirinhas engraçadinhas sobre fatos da vida deles. Eu sempre amei a obra do Van Gogh, passaram horas olhando de novo e de novo as obras naquele livrinho.
Não sei bem o que me fez conectar tanto com suas pinturas, arrisco que a cor e a textura das pinceladas sempre me encantaram bastante. Mas lembro muito da tristeza que senti com uma das tirinhas que tinha nesse livro: em três quadros, vemos o Van Gogh indo comprar tinta; ele pede todos as cores que tem alguma relação com comida, com os olhos esbugalhados e muito atentos. A tirinha estava na mesma página que nos contava que ele era muito pobre em vida, que diversas vezes passou fome para poder comprar as tintas para pintar seus quadros. Eu fiquei tristíssima com aquela piada, achei de mau gosto e sempre ficava lendo e relendo ela quase como se eu pudesse fazer alguma coisa pra ajudar.
Esse trecho “para ele poder incorporar a real beleza e os desastres a seu mundo irreal” da Olivia sobre o Darger também é sobre o Van Gogh.
Depois a autora fala uma coisa sobre a relação das pessoas com objetos que me deixou bastante pensativa, tanto porque estou constantemente pensando nisso (ou mais ainda: estou sempre pensando em como me livrar das coisas e talvez analisando melhor, sem conseguir muito bem fazer isso):
“Havia pilhas de livros e revistas velhos, caixas de lâminas de corte, pincéis, botões, canivetes e canetas coloridas. Mas o que realmente chamou minha atenção foram duas coisas: uma mesa com uma pilha alta de tintas e lápis de cor, muitos deles feitos para crianças, e um cesto de roupa para lavar cheio de bolas de barbante marrom e prateadas sujas.
É comum que as pessoas que acumulam sejam socialmente retraídas. Às vezes, a acumulação causa isolamento e, outras, é um paliativo para a solidão, uma maneira de confortar a si mesmo. Nem todo mundo é suscetível à companhia de objetos; ao desejo de guardá-los e ordená-los; a usá-los como barricadas ou brincar para frente e para trás entre expulsão e retenção. Num site de autismo na internet, deparei-me com uma discussão sobre o assunto em que alguém sintetizara belamente o desejo, escrevendo: “Sim, de fato, um problema para mim e, embora eu não tenha certeza se personifico objetos, tendo a desenvolver um tipo estranho de lealdade a eles, e é difícil descartá-los.””
Eu vou falar um pouco mais em outro texto sobre estar mal (semana que vem, em janeiro estou falante e não teremos só um email), mas não deixa de ser gritante isso, como o nosso adoecimento e sofrimento nos façam apegar em objetos (em nota: ver realismo capitalista, do Mark Fisher). Nesse livro a gente tem essa distância entre o apego aos objetos como consequência da distância com outras pessoas, a solidão causando essa relação de posse com suas coisas. Mas e hoje?
Eu gostei também que na sequência a Olivia traz uma crítica a certas interpretações sobre esse acumular de objetos (mas aqui ela tá falando da fotógrafa Vivian Maier):
“Todas essas pessoas falam sobre a acumulação dela, a maneira como ela passou a vida juntando bugigangas. Ao assistir, não pude evitar a sensação de que as reações delas eram pelo menos sobre dinheiro e status social; sobre quem tem o direito à posse, e o que acontece quando pessoas excedem o número de posses que suas circunstâncias e posição comumente permitiriam. Eu não sei você, mas eu, se fosse solicitada a pôr tudo o que tenho num quartinho da casa de alguém, poderia muito bem parecer uma acumuladora.
Embora nem a pobreza extrema nem a riqueza tornem alguém imune a desejar um excesso de posses, vale a pena perguntar sobre cada comportamento apresentado como estranho ou excêntrico se o limite transgredido é a classe, e não a sanidade.”
Eu tô falando tudo isso porque são reflexões que faço com frequência, mas também como prelúdio pra explicar o que estou mudando no meu conteúdo (a enrolação da gata rs):
Talvez seja o ascendente em gêmeos (pra quem é de astrologia), mas eu tenho muita dificuldade em ficar quieta e me contentar com uma coisa só. Por isso eu fiz um blog (1), uma página no facebook (2), um grupo no facebook (3), um canal no youtube (4), duas contas no instagram (6), uma newsletter do blog (7), uma newsletter “pessoal” (8), uma newsletter paga no catarse que também é clube do livro e grupo de conversa (9), um podcast (10) e um tiktok (11).
Só que: eu não dou conta da regrinha básica da internet que é frequência + consistência em todos esses lugares, porque obviamente é muita coisa. Então eu comecei a reduzir esse lugares e a frequência pra conseguir respeitá-la.
Sabe aquele jogo 2048 que você vai juntando os números e somando? Foi isso que fui fazendo: jogando pra um lado e pro outro e juntando coisas que eram iguais pra reduzir um números maiores.
Faz tempo que a página e o grupo do facebook deixaram de existir porque eu não entrava mais lá. O instagram virou um problema pra mim porque me deixava muito ansiosa e decidi que vou estar presente mesmo no @cristalmuniz que me deixa ser todas as versões de mim: a estudante de nutrição, a leitora, a cozinheira, a tutora de pets, a que pensa em simplificar tudo o tempo todo, a que evita produzir lixo, a que vê todas as séries de crime do netflix, a viciada em ver vídeos de limpeza e faxina.
O instagram @umavidasemlixo vai continuar existindo pra trazer soluções que eu já falei sobre e pra resumir os conteúdos que vão entrar no youtube, no podcast e no blog. O podcast vai ter uma frequência mensal e o youtube e o blog, quinzenais. É isso que consigo e quero fazer: menos conteúdo, mas um conteúdo mais longo & reflexivo. O tiktok vai ser não-profissional, porque não tenho condições mas eu adoro estar lá como PF e não PJ.
E as newsletters vão virar uma só: a Cuca Fresca, essa aqui que eu já expliquei ontem como vai ser. :)
Eu tô bem feliz com essas mudanças, porque eu gosto mesmo é de escrever. E acho que esse novo capítulo vai render bastante pra gente aqui, em um lugar só.
Dúvidas, comentários, opiniões ou o que você quiser dizer: só responder esse email ou, se tiver vendo no site, comentar aqui embaixo.
Até a próxima cartinha!
Cristal Muniz <3
Por favooor, fale mais sobre a "pilha-eterna-de-uma-mente-sem-lembranças de resíduos variados que preciso descobrir onde descarta & levar até lá". Me identifiquei muito com alguns pontos que vc levantou, com a vontade de ter coisas únicas e a dificuldade de descartar.
Gostei do texto!
Eu também era (e ainda sou) uma garota que tinha uma coisa só dos objetos. Antes dessa onda minimalista (agora fui perceber) meus pais já eram e acabei herdando o hábito, era por motivo financeiro, hoje é por escolha.
Vejo que o minimalismo pode ter muitas nuances porque é sobre ter tempo e energia para o que realmente importa e não sobre uma única fórmula/padrão/estilo/mandamentos