Eu amo ver vídeos de pessoas fazendo coisas completamente inúteis: decorando bolos, fazendo dioramas, fazendo objetos de resina, desenhando, restaurando objetos antigos, bordando, pintando a casa.
Um tempo atrás tava vendo um vídeo gigante de um homem montando uma cidade de Lego com direito a trem, montanhas, casas com móveis dentro e pensando quanto tempo ele não levou pra fazer isso, uma vez que o vídeo acelerado tem 1h de duração. Foi aí que pensei que o que mais amo assistir na internet hoje são pessoas fazendo coisas inúteis. Coisas que não servem a uma função. Que não aumentam nossa produtividade. Que não vão nos dar dinheiro, melhorar nossa performance, nada. Servem pra distrair, pra divertir, pra outras coisas.
Quando me apresentaram vídeos de pessoas fazendo dioramas, fiquei dias perguntando pra quem me apresentou e >me< perguntando pra que aquilo servia: “as pessoas compram daí um desse?”, “elas usam isso de decoração?”, “a pessoa monta a coleção? Como funciona?”.
Percebi que meu incômodo era porque eu não conseguia enxergar sentido de performance, de produtividade, de produto nisso tudo.
Um tempo atrás, um amigo perguntou no Twitter se deveria comprar um videogame novo e eu respondi assim:
Fiquei pensando nisso por meses, até que me bateu a vontade de ir procurar no dicionário a definição de utilidade, afinal de contas, por que não? (caso você não saiba, eu faço isso de ir olhar no dicionário a definição de uma palavra o tempo todo, etimologia and semiologia are my passion). Mas eu fui pesquisar isso no livro Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade do sociólogo Raymond Williams, um pensador de cultura e sociedade. Esse livro é basicamente um dicionário de cultura acerca de algumas palavras que usamos na sociedade moderna.
Mas aí que no verbete sobre utilidade diz o seguinte sobre o uso dessa palavra:
“O que utilitário enfatiza, nesse sentido explícito, é uma cisão entre alguns tipos de atividade e outros. ARTE (v.), essa palavra eminentemente prática, especializou-se como parte do mesmo movimento em uma espécie diferente de atividade e de felicidade ou prazer: contemplativo ou ESTÉTICO (v.). Desse modo, a antiga prática de usar coisas para fazer outras coisas especializou-se, de acordo com seu propósito, em arte ou utilidade.
Trata-se de uma divisão que está na raiz da produção capitalista, em que as coisas especializam-se como mercadorias. É a transferência ocorrida, por exemplo, em "essa era utilitária de busca de dinheiro" (1839) e, em certo sentido, é uma transferência real. Contudo, assim como em materialista, reuniram-se e confundiram-se diferentes tipos de objeção. Muitos dos opositores do utilitarismo e do materialismo usaram as dificuldades desses modos de ver o mundo, que na prática foram tão amplamente aceitos, para promover valores residuais que, em termos de uma ordem social tradicional ou de um deus, têm prioridade sobre "a maior felicidade do maior número". Nisso, porém, foram maravilhosamente auxiliados pela especialização teórica e prática de utilidade nos termos da produção capitalista e, em especial, pela tradução de "a maior felicidade do maior número nos termos do mercado organizado (no sentido cada vez mais abstrato do S19), considerado o mecanismo de regulação desse propósito último. Utilidade, outrora um conceito crítico, passou a ser, nesse contexto, ao mesmo tempo ratificador e degradante, e outros termos tivera'm de ser encontrados para afirmar o princípio da felicidade da maioria.”
Grande parte do trabalho de um designer é ter muita referência. Quando eu tava na faculdade (de design), eu passava horas e mais horas rolando o feed do Pinterest (e uns outros 2938497 sites) olhando tudo, faminta. Outro dia lembrei que, nessa época, a timeline era de quem você seguia, não o que o algoritmo decidia por você. Saudades.
A inspiração pra um trabalho ou pra qualquer coisa que o valha pode vir de lugares não óbvios. Aliás, arrisco dizer que normalmente, os trabalhos mais legais são assim, porque tão enxergando “fora da caixa” como se costuma dizer muito. Se eu não sei o que pesquisar, eu não sei o que quero ver. Um algoritmo decidindo por mim me mata toda vez, porque eu não suporto ficar vendo no Pinterest a mesma coisa em versões dela própria hoje em dia. A escavação na internet é o que me anima, chegar no desconhecido porque eu fui criando um caminho de interesse e não porque uma inteligência artificial trilhou pra mim – até porque, trilhou baseada em o que ela acha que vai me fazer ficar mais tempo ali plus quer me vender alguma coisa nesse processo.
Bom, mas aí recentemente eu comecei a entrar no Pinterest de novo pra pesquisar uma que outra coisa totalmente inútil. A mais recente foram inspirações de looks cor de rosa pro meu aniversário da Barbie. Tenho gastado horas vendo coisas bonitas, casas coloridas, unhas divertidas, objetos de vidro colorido e translúcido e, eventualmente, vestidos de noiva. É isso que o algoritmo me mostra na minha timeline, não o que eu pesquiso. Depois que pesquisei “look barbiecore”, ele me mostra umas coisas espalhafatosas e brilhantes também. O ponto é que nada disso é útil e lembrei desse texto – ou melhor, do argumento desse texto que já tava iniciado (qualquer dia desses eu começo a mostrar pra vocês que cada texto desses demora um ano pra ser feito, sem exagero).
Quando eu decidi fazer nutrição, eu contei pra quase ninguém o projeto de fazer cursinho e vestibular. Eu não queria as opiniões que recebi mesmo assim depois que passei e entrei na faculdade. Algumas pessoas faziam questão de dizer que achavam perda de tempo ou que não teriam saco pra fazer uma segunda faculdade. Outras queriam saber o que eu queria fazer com essa faculdade, como pretendia usar ela no meu trabalho atual. Algumas me encorajaram a sair e ir fazer um mestrado “na área” que seria mais eficiente com tempo “e eu aprenderia quase a mesma coisa”.
Achei tão sintomático que a maioria das pessoas reclamava de falta de tempo ou de ter pressa quando fazia esses comentários pra mim. Eu entendo que bom, a faculdade demora cinco anos, mas que outro jeito existe que não fazer ela? Eu não falo muito sobre estar fazendo faculdade (agora no 4º ano, inclusive) porque não quero responder perguntas sobre (e já aviso que não vou), mas eu sei o que quero com ela e quais os passos tenho que tomar.
Estamos viciados em produtivizar tudo, economizar tempo, mas pra quê? Pra ficar mais horas numa tela recebendo anúncio e querendo comprar coisas? Pra ficar mais horas trabalhando um trabalho que muito provavelmente poderia ser reduzido pela metade?
Algumas coisas tomam tempo, porque são construções complexas. Fazer uma faculdade não tem nenhum atalho que não: fazê-la. Quando a gente é jovem, antes de terminar a faculdade, costuma achar metade das matérias desnecessárias e inúteis. A gente acha que sabe os atalhos e é viciado em buscá-los, um vício bastante moderno de chegar antes, chegar primeiro, chegar. Acho inclusive que, muitas vezes, é isso: a gente só quer chegar. E depois? E durante?
Eu detesto muito todas essas novidades tecnológicas que a cada tanto surgem como completamente inovadoras e eu sou extremamente cínica com elas também, porque eu sou #TimeHumanos. Experimenta pegar esse texto, jogar no chatgpt e pedir pra ele resumir pra você ver como ele não é inteligente, nós que somos. Eu inclusive fiz uns testes e achei tão ruim tudo. Se é pra me dar ideia ruim de tema de conteúdo ou ideia ruim de texto, deixa que eu mesma faço. Por isso acho tão ridículo geral comprar a ideia de que essas IA vão revolucionar trabalhos que são profundamente humanos, como é o caso das artes.
O Warhol tava falando de reprodutibilidade na arte nos anos 60 e a gente fingindo que é inovador um troço que faz mashup de arte dos outros. Eu realmente detesto essas coisas como vocês podem perceber rs.
Fui reler o capítulo do livro Cidade Solitária da Olivia Laing que fala sobre o Warhol (eu prometo que vou ler livros novos, o clube do livro vai me ajudar hehe) e ela começa falando da obra dele assim:
“No início dos anos 1960, Warhol se reinventou. Em vez de desenhos extravagantes de sapatos para revistas de moda e campanhas de propaganda de lojas de departamentos, ele começou a produzir pinturas planas, mercadorizadas, assustadoramente exatas de objetos ainda mais desprezíveis, o tipo de produto doméstico que todo mundo nos Estados Unidos conhecia e usava diariamente. Começando com uma série de garrafas de Coca-Cola, ele progrediu rapidamente para as latas de sopa Campbell's, marcas de alimentos e notas de dólar: coisas que ele literalmente colhia nos armários de sua mãe. Coisas feias, coisas indesejadas, coisas que não poderiam fazer parte da sublime câmara branca da galeria.”
Nesse livro, a autora fala de solidão e o Warhol era uma pessoa bastante solitária, mas é interessante os recortes que ela traz pra gente entender a lógica daquele trabalho tão pop, tão colorido, tão comum e tão solitário:
“Ele estava pintando coisas às quais era sentimentalmente apegado e que até amava, objetos que adquirem valor não por serem raros ou individuais, mas porque são confiavelmente os mesmos. Como ele explicou mais tarde em sua autobiografia encantadoramente estranha, A filosofia de Andy Warhol, na adorável cadência de Gertrude Stein, na qual ele era tão perito: “todas as Coca-Colas são iguais e todas as Coca-Colas são boas. (…)
Warhol enfatizou o glamour da similaridade, bem como seu aspecto potencialmente enervante ao produzir seus objetos comuns como múltiplos; um bombardeio gerativo de imagens repetidas num fluxo de paletas.”
Acho interessante pensar que, de certa maneira, o Warhol pegou coisas inúteis e transformou elas em obras pra enaltecer essa inutilidade no sentido de que o fato delas serem muito populares era o que geraria conexão nas pessoas. E, de fato, é muito provavelmente um dos motivos pelos quais a gente se identifica e gosta tanto das obras dele, até hoje (pelo menos eu sempre gostei muito, ainda que sempre tenha enxergado esse caráter plástico da artificialidade de se pintar uma embalagem comercial).
Resgatando lá do Raymond Williams:
“ARTE (v.), essa palavra eminentemente prática, especializou-se como parte do mesmo movimento em uma espécie diferente de atividade e de felicidade ou prazer: contemplativo ou ESTÉTICO (v.).”
Mas nesse lugar de o que é útil ou não, de imagens geradas por inteligência artificial, a gente tem a ausência do humano e a entrada das máquinas pra, teoricamente, gerar algo que é humano. Tem esse trechinho no livro sobre o Warhol que fala algo muito num lugar parecido:
"Múltiplos Andys, assim como múltiplos Marilyns e Elvis serigrafados, levantam questões sobre originais e originalidade, sobre o processo duplicatório pelo qual a celebridade surge. Mas o desejo de se tornar um múltiplo ou uma máquina é também um desejo de ser libertado do sentimento humano, da necessidade humana, ou seja, da necessidade de ser tratado com carinho e amado. “Máquinas têm menos problemas. Eu gostaria de ser uma máquina, você não?”, disse ele à Time, em 1963."
Acho que não cabe aqui, na verdade, vou voltar ao assunto da utilidade jájá, mas só pra finalizar minha birra com AIs, segue uma citação de outro livro que cito texto sim texto também, o Resista: Não faça nada da Jenny Odell:
“Não sou contra a tecnologia. Afinal, há formas de tecnologia — de ferramentas que nos permitem observar o mundo natural a redes sociais descentralizadas sem fins lucrativos — que nos ajudam a entender melhor o mundo atual. Por outro lado, sou contrária ao modo como as plataformas corporativas compram e vendem nossa atenção, assim como designs que usam a tecnologia para inculcar uma definição limitada de produtividade que ignora o local, o carnal e a poética. (…)
Qual o significado de construir mundos digitais enquanto nosso mundo real está se esfarelando diante de nossos olhos?”
Olhando pra um significado de utilidade, útil e inútil mais neutro que é o do dicionário, temos isso aqui:
Então, na verdade, eu até gostaria de me corrigir, porque eu acho que as coisas inúteis são bem úteis sim, mas só não são produto. Eu acho muito útil ficar vendo esses vídeos de gente fazendo coisas porque me acalma, além deu achar muito interessante ver como as pessoas fazem as coisas. Eu acho muito útil ficar horas vendo coisas no Pinterest porque me dá ideias em lugares que eu nem sabia que podia ter, além de ver coisas bonitas e depois ficar feliz porque fiz uma maquiagem diferente ou montei um lookinho colorido baseado em algo que vi lá. Eu acho muito útil a inutilidade porque esse lugar onde a gente faz algo só por fazer, por prazer, porque gosta, é gostoso demais.
Quer dizer, se a gente olhar culturalmente pro uso da palavra, mais vale mesmo levar em conta a utilidade como conceito capitalista de produtividade, como o Raymond Williams colocou.
Vi outro dia as irmãs Olsen dando entrevista e falando uma coisa que aparentemente elas repetem bastante, que é “meu pai sempre dizia: ‘não’ é uma frase completa”. Depois disso, fiquei pensando em como posso simplesmente não justificar cada coisinha que eu faço (que é uma neurose minha) e posso apenas dizer: não quero. Ou: quero. Tenho tentado praticar essa explicação pra quando eu ou outros me perguntam pra que eu to fazendo aquilo: porque eu quero. Basta. Não precisa ser útil, não precisa me dar retorno, não preciso fazer pra melhorar minha performance como humana, posso apenas: querer.
Beijos,
Cristal Muniz
Mari, o efeito de “respiro” se deu aqui também. Tentar ocupar cada brecha de tempo de uma forma programada, utilitarista, pragmática me traz sensações de vazio, falta de pertencimento, de sentido. Acho que grande parte dos nossos sintomas são com relação a essa contemporaneidade… a racionalidade neoliberal a qual estamos vivendo traz a sensação constante de olhar a vida como uma empresa a ser gerida. A sensação posterior de culpa, fracasso caso não o fazemos…
Resistir a essa lógica acho que se dá nisso, de olhar para a inutilidade de outra forma, de ver as brechas como respiros e não como angústia de algo que não estamos cumprindo…
Ah, foi bom escrever aqui. Obrigada pelas referências.
As vezes acho que somos a mesma pessoa? Kkk socorro. Eu peguei todas as referências, o vídeo das Olsen..
Andy Warhol é minha inspiração (sou ilustradora). Eu amo como a arte é uma coisa de resistência, é um lugar que nada contra o capitalismo desenfreado. Como eu ofendo alguém que acha que preciso monetizar todas as artes que produzo dizendo “não, obrigada” (e como tem dias em que acho que ser uma máquina seria até melhor).
Tambem adoro ver pessoas fazendo coisas inúteis (no meu caso, ver aqueles vídeos de pessoas fazendo micro hamburgueres em uma micro cozinha de brinquedo, onde a chama do fogão é uma vela (!!!!).
Enfim, apesar de estar divagando aqui nos comentários queria dizer que ler esse texto me fez muito bem, me deu um respiro em uma quinta feira que tô quase me afogando. Obrigada. E vou lá rolar meu feed do pinterest porque não sou de ferro :)