Podaram as árvores do meu condomínio. Foi uma poda bem significativa, em dado momento achei que iam cortar as árvores fora, fiquei apreensiva, segui observando, ficaram as árvores. Depois do serviço completo, tava entrando no condomínio e senti uma sensação diferente. Agora dá pra ver meu bloco desde a entrada, porque antes as duas árvores podadas aqui na frente cobriam. Olhei pra cima, o caminho aberto, a janela do vizinho vazia, aparentemente se mudou, antes não dava pra ver mas agora dá.
Pensei que nossa, que engraçado, o caminho agora tá livre, dá uma sensação de possibilidade, de liberdade, sei lá porque. Parei pra olhar minha casa, enquanto terminava uma limpeza e tive a mesma sensação. Tô desde o dia 1º de julho do ano passado futricando em cada canto da casa e catando coisas que não quero mais para descartar. Abrindo caminhos, consertando coisas, tirando as coisas do chão.
Ano passado não fiz metas de livros lidos ou sei lá mais o que. Fiz metas tipo “quero deixar o chão livre” que consiste em um esforço para ter o mínimo de coisas no chão de modo que seja fácil de limpar a casa.
Guardo muita coisa. Sempre guardei. Eu precisava guardar, porque guardar dá menos trabalho que olhar, decidir onde pôr e resolver aquilo. Ou ainda menos trabalho que olhar, ver que não quer e ter que descartar. Tenho descoberto muita coisa que guardei, metaforicamente também, e tá me dando muito trabalho largar mão, deixar pro mundo, desistir dessas coisas todas.
Tem alguma coisa errada, eu pensei, e fiquei tentando entender o que tinha mudado. Podaram também as árvores que cercam o terminal de ônibus. Demorei alguns dias pra perceber que era isso que tava diferente. Podaram as árvores ao redor do rio no caminho da faculdade pro hospital. Eu sabia que tinha algo de diferente.
Quando não achei que poderia ter mais exemplo, aconteceu de novo. Saí de casa, o caminho já livre das podas aqui dentro. Saio na rua, uma sensação de luz, de ver lá longe. Podaram as árvores do terreno na frente de casa.
Não queria ser eu a fazer uma metáfora de abrir caminhos positivos com poda de árvore, sei bem da ironia, mas achei tão engraçado esse sentimento do vento soprando, da água correndo, da luz passando.
Em dado momento achei que era algo como uma síndrome da poda, depois pensei que deve ter apenas sido uma época do ano adequada pra se fazer isso. Sempre que podam muito árvores ou derrubam mesmo eu sinto minha cara mostrando os dentes, igual cachorro que fica bravo antes de rosnar de fato.
Não sei bem jogar coisas fora, no lixo. Objetivamente eu até sei, eu ensino as pessoas como fazer do jeito mais correto possível tipo usar os PEVS de farmácia, vidro e lâmpadas. Mas subjetivamente eu não sei bem jogar coisas fora. Eu gosto de carregar todas elas comigo. Um pouco é usar elas de escudo. Um pouco pode ser usar elas depois. Tenho pena de desperdiçar. Acho que vou usar de novo. Acho que aquilo me representa. Sou os objetos que não jogo fora.
Comecei um projeto em julho de descartar coisas, fiquei doente, parei e nunca mais voltei. Durante o projeto, descobri que tinha literalmente embalagens de lixo guardadas. Coisas vencidas. Uma energia parada estranha, pra que?
Decidi jogar as coisas fora. Objetivamente e subjetivamente. Preciso me livrar do que estragou, venceu, não gosto, não uso, vai estragar se mantiver comigo parado. Toda vez que abro uma gaveta, uma caixa, uma porta, um cesto, descubro coisas que achei que já tinha jogado fora. Antes eu tinha medo: “será que vou precisar de novo?” e guardava. Agora eu falo “foda-se” e mando embora.
Podei minhas árvores, abri caminhos, deixei a luz passar, o vento soprar, a água correr. Pra isso acontecer, não dá pra ter um monte de objetos atrapalhando.
Ainda tem um monte de coisa pra jogar fora. Eu olho uma vez, mantenho, olho a segunda, titubeio, olho a terceira, jogo fora. Mas essa não é uma coisa que faço automaticamente, que faz parte da minha rotina, que só faço e nem penso. Tiro um esforço gigante mental todos os dias pra jogar coisas fora, pra revisitar lugares onde as coisas se escondem, fazer o que tem que ser feito.
Curiosamente, jogar coisas no lixo tem me feito gerar menos desperdício. Quanto mais eu presto atenção nas coisas, mais abro as portas e gavetas, menos coisas paradas ficam, mais até o fim eu chego nos produtos. Me desfazer do que eu não uso também deixa mais espaço visual pras coisas que realmente uso e gosto de usar. A casa fica mais em ordem, é mais fácil de limpar, de manter, parece mais organizada. Acho que esse ano consigo cumprir a meta de “deixar o chão livre”.
Todo dia – é um esforço de todo dia –, é uma coisa repetitiva e cansativa, mas que precisa ser feita. As árvores crescem, daqui um ano é época de podar de novo. Daqui uma semana preciso tirar de novo o lixo reciclável. Daqui um mês preciso de novo dar uma olhada nas minhas roupas.
Beijos,
Cristal Muniz
Cristal, eu amei tanto esse texto! sabe aqui no Canadá a cultura do 'spring cleaning' é muuuuuito forte. tão forte que entre março e abril a prefeitura de Montral faz, literalmente, uma força tarefa pra limpar a cidade depois que toda a neve derrete (junta muito lixo na neve, acredite). e eu fiquei pensando como, experienciando mais a troca das estações, essa vontade de limpar e organizar e destralhar acaba virando um ciclo de recomeços e reavaliações de vida. meio que se permitir florescer junto com a primeira, tirando o que acumulou do inverno, alongando os músculos, vendo o que mudou (em si e no espaço) nos últimos seis meses de escuridão (literal, no caso - anoitece 4h da tarde????). a gente evita olhar e mexer e destralhar e jogar coisa fora, mas no fim, a sensação é sempre melhor e mais leve do que no começo, né?
Essa poda toda é foda.