Consertar (e deixar à mostra) pra renovar
Juntar os pedaços deixando o mundo ver que fomos (re)construídos
Eu acho que sempre quis aprender a bordar. Lembro quando eu era bem pequena, criança mesmo, que eu gastava meu dinheiro comprando revistinha de artesanato e ponto cruz ao invés das revistas tipo Capricho – tinha que escolher, não dava pra comprar todas. Eu queria tanto aprender que, na vida antes de ter mil tutoriais no youtube, consegui fazer meio toscamente uns bordadinhos ponto cruz. Depois, com umas dicas de uma tia (se não me engano) melhorei minha técnica. Mas eu só fui fazer um curso de bordado em 2020, com técnica livre que envolve fazer vários pontinhos diferentes. Foram semanas junto com senhorinhas e eu tava muito feliz! Mas peraí que o assunto de hoje é conserto.
Uma meia minha abriu um pedacinho da costura um tempo atrás. Ela era nova, mas mesmo que fosse velha eu ia costurar o buraquinho. Só que: eu tinha visto vários vídeos de bordados bonitinhos pra consertar furos em meias e obviamente pensei "ah, vou fazer um coração bonitinho" confiante com minha aula de bordado. Claro que deu errado. Ficou parecendo mais um coronavírus no fim das contas, porque desmanchei o coração e tentei fazer uma florzinha. Lembrei disso com esse post da Flora (que pelo visto não tá mais disponível </3), também com remendos aparentes nas meias dela. São outra técnica, mas parece bem interessante – e deixa bem claro pra quem olhar que são meias remendadas.
Consertar, de acordo com o dicionário, é "repor uma situação ou um estado anterior" e também "resolver uma situação ou um problema". Eu nunca tinha ido atrás da definição da palavra, mas me pareceu perfeito pro que eu tô querendo te falar. Consertar é desfazer o problema e quase que voltar no tempo substituindo algo pra aquele conserto signifique um produto novo ou também apenas resolver o problema, não necessariamente voltando como era antes. É o caso das minhas e das meias da Flora.
Eu gosto tanto dessa ideia, de consertar e deixar o mundo ver o conserto. Li sobre uma técnica japonesa de reparo de cerâmicas que é justamente isso. Chama kintsugi, que significa literalmente "unir com ouro". A ideia não é disfarçar que a caneca quebrou, mas deixar aparente sua história, suas falhas, sua recomposição com uma resina misturada com pó de ouro entre as peças. É interessante olhar pra essa técnica mais que um ode ao que já existe, mas também como um reconhecimento da construção da gente mesmo, pedaço a pedaço.
“Em um mundo que valoriza a juventude, a perfeição e o novo, a arte do kintsugi contém uma sabedoria particular, aplicada a nossas vidas, assim como às cerâmicas. O cuidado e amor gastos nas peças quebradas deveria nos encorajar a respeitar o que está danificado e quebrado, vulnerável e imperfeito, começando por nós e pelas pessoas ao nosso redor” - daqui.
Pense nos furos das suas meias. Das suas blusas. Dos nicados das cerâmicas na cozinha. Dos pedaços faltando dos móveis. Reparar essas coisas é um exercício de paciência, de atenção, de celebração pela origem e vida dessas coisas. A gente (e eu falo muito de mim aqui) acaba querendo descartar o que não está perfeito, os erros e pequenos problemas nos atrapalham. Eu, que sou bastante obsessiva com limpeza, alinhamento, organização, ordem, me incomoda profundamente. É um incômodo físico de ver aquela caneca lascada ou o furo na blusa. Porque está feio, porque não está como era pra estar.
Consertar e deixar aparente o conserto, com uma resina de ouro ou um bordado de coração (se eu conseguir melhorar minha técnica rs) é um lembrete pra mim que não existe nada perfeito. É renovar dando um novo significado, uma nova semântica pras coisas que me rodeiam. E do que eu quero estar rodeada? De coisas novas, o tempo todo? Ou de coisas que eu aproveito o máximo? O que significa querer coisas novas o tempo todo? Que valor a gente dá pra essas coisas na nossa vida?


Esse texto foi publicado originalmente na newsletter do blog Uma Vida Sem Lixo em 21 de agosto de 2020 e resolvi trazer pra cá pra ter esse arquivo aqui, com alguns ajustes no texto. Você sempre pode: comentar no site ou responder esse email pra dizer o que achou. ☺️
Lembrei desse texto antigo porque essa semana meu sapatinho ficou assim todo descolado enquanto eu andava apressadamente a caminho da terapia:
Falei lá nos stories sobre como consertar é sempre um ato revolucionário, num mundo onde querem que a gente descarte tudo o tempo todo. Mas mais ainda: consertar e deixar à mostra o conserto é dizer que sim, aquilo não está sendo disfarçado de novo, aquele objeto já foi bastante usado a ponto de precisar de uma cola, uma costura ou um reparo que seja. Mas eu sigo usando, porque não quero jogar fora. :)
para além daqui
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que texto legal! eu também amo consertar as coisas! um hábito criado mais pela necessidade que pelo hobbie, mas que se tornou uma das minhas atividades manuais preferidas. é muito satisfatório ver algo renovado e que ali tem um pouquinho de você também. como vi em algum lugar que não lembro: "ser amado é ser mudado" e acho que é sobre isso, sobre a meia com a costura aparente, sobre o sapato remendado, sobre a caneca colada. tudo ali tem história.
sim, remendar coisas tb é uma prática minha desde sempre. se tem conserto, eu conserto - ou alguém que saiba fazê-lo. e acho isso um charme a parte da minha vida, pq é um tempo gostoso que tenho comigo mesma, perdida nas agulhas, fios, parafusos, fita adesiva, óleo desingripante ou qq outro material q seja requerido no conserto.
e ontem mesmo a helo carmona, da newsletter "makers gonna make" (substack) escreveu exatemente sobre isso e te citou no texto. incrível, né?!? beijo