Eu dei muitas entrevistas ao longo desses anos e elas me perguntaram praticamente as mesmas cinco perguntas (sim, foi uma reclamação), entre elas – quase – sempre tinha: “Qual foi sua maior dificuldade no processo de parar de produzir lixo?” e eu sempre disse: não sei dizer. Eu comecei o projeto de não produzir lixo porque eu queria, porque eu era adulta, era uma escolha minha e que fazia sentido pra mim. Eu nem percebi o que era difícil porque eu encarava como obstáculos pra eu superar – e depois contar na internet como tinha conseguido.
Aos poucos fui mudando minha resposta pra “nas emergências”: quando você sai de casa correndo e não percebe que esqueceu seu copo, por exemplo. Ou quando acontece um acidente. Ou quando o assunto não tem nem discussão, como é o caso da camisinha ou dos remédios que eventualmente temos que tomar.
Mas a verdade é que é difícil mesmo quando a gente tá mal. Eu estive mal nos últimos tempos e foi muito difícil não gerar certos lixos, porque eu não tinha forças pra cozinhar – então pedia delivery ou comia comidas prontas. Eu comprei um monte de coisa que não precisava de fato pra sentir uma dose de dopamina de comprar, pra me distrair, pra pensar em outra coisa, pra mover na minha casa as coisas que eu estava evitando mover na minha vida.
Eu não consegui ler livros e fiquei fazendo de tudo pra não pensar pensamentos, como diz meu amigo-de-twitter (e filósofo moderno rs) Bruno:
Eu foquei em me distrair, me reconstruir e até mesmo apenas existir. Pra algumas coisas eu não tinha porque gerar lixo ou desviar o caminho que trilhei até aqui. Pra outras, tinha.
No dia que a ativista, professora e escritora bell hooks morreu, muita gente lembrou ensinamentos lindos dela. Eu pensei nesse texto quando li esse tuíte:
E lembrei de outro texto que dizia que pro capitalismo viver a gente precisa estar triste. É isso que nos faz ter vontade de comprar, das coisas úteis às inúteis. É a gente se sentir inadequada que faz a gente querer consumir milhares de produtos que vão modificar nossa aparência e nos fazer bonitas. É na nossa miséria que isso tudo prospera, porque se você tá bem e tá feliz, não precisa de nenhum objeto.
Mas eu sou cria dessa sociedade, assim como você. É difícil negar ou fugir dessa realidade, desses desejos e dessa satisfação rápida que o consumo de coisas – ou de conteúdos – nos traz. Em alguns dias que eu tava mal, o pior momento era tomar banho porque o silêncio ia trazer à tona tudo o que eu tava soterrando com tiktoks, tuítes, séries, vídeos e músicas. Eu não preciso muito pra me distrair, ninguém precisa na verdade, porque todas as redes foram sendo construídas pra que a gente passe o máximo de tempo possível scrollando. Eu sei disso. Eu li “Resista: Não faça nada” da Jenny Odell. Mas tem vezes que a gente precisa aceitar que tá mal também.
Esses últimos dois anos foram difíceis pra todo mundo, acho difícil alguém no Brasil dizer que está bem. Requer muita estrutura pra estar bem em uma sociedade que atua ativamente, o tempo todo, de forma cada vez mais intensa, para que a gente fique mal. Some-se a isso todas nossas questões pessoais e: é foda.
Desde um pouco antes da pandemia eu tinha perdido o brilho no olho de fazer o que faço porque recebi muita hostilidade de pessoas que achei que tavam de mãos dadas comigo e vim trabalhando isso até pra enxergar o tanto de carinho que também recebo – como de vocês que tão lendo isso agora <3 –, mas também pra tirar a armadura rígida que vesti pra me proteger e botar uma roupinha confortável e mais flexível. Eu inaugurei outro dia no instagram a hashtag #sustentabilidadeimperfeita, pra gente lembrar que não existe esse preto no branco como muita gente insiste que existe. Eu me olhei com mais carinho, quando eu “falhava”, porque eu tava escolhendo outra luta, como a de ficar bem. Pra gente se esticar, se mover e se flexibilizar (tema do próximo texto!) a gente precisa estar vestida com roupas que permitam isso, não uma armadura de metal.
Nenhum caminho é em linha reta ascendente. É sempre uma maçaroca, de idas e vindas, de curvas e meias-voltas, de subir e de descer, de parar e esperar e, eventualmente, seguir.
Mas a culpa, amigos, ela tá ali só esperando. Não por acaso hoje tocou a música Culpa, d’O Terno e queria aproveitar pra colar aqui:
Será que as coisas que eu faço
Penso que não têm problema
Na verdade são pecado
E é por isso que eu me sinto tão culpado?
Ou será que a sociedade diz que é para eu ser contente
Quando eu fico meio triste
Ou até meio chateado
Eu fico mais, pois acho que eu sou o culpado
A gente que se importa tem a tendência a carregar a culpa que não é nossa sobre nosso adoecimento, sobre nossas idiossincrasias, nossas incoerências. E é muito fácil falar do que dá certo, difícil mesmo é falar do que dá errado. Assumir que a gente é humano e não uma marca. Que aqueles recortes que a gente vai fazendo, seja no instagram seja onde for, são só recortes mesmo. Às vezes a gente mesmo se esquece de se ver por inteiro, só vê os pedaços. Mas como boa designer-formada-e-aposentada, preciso lembrar da gestalt: “para se compreender as partes, é preciso, antes, compreender o todo”.
Que a gente fique bem.
Um beijo,
Cristal Muniz.
Cristal, valeu ❤️
Estou no processo eterno de me distanciar das redes sociais por todos os motivos que já conhecemos e seus textos que chegam por email (amo email) me fazem super bem! Me faz lembrar da interação de uma outra maneira. Como quando abrimos um livro ou um texto e parece que encontramos um bilhete dentro de uma garrafa, sabe? Parece que a pessoa que escreveu lançou no ar pra que alguém desconhecido (com a intenção de ser desconhecido) ache e se transforme. Essa interação que nos lembra que todo mundo é esburacado, tá na existência essa condição. E não é um "tá tudo bem" é "vamo falar sobre isso então?". Não é normalizar "já que todo mundo tem" é falar já que todo mundo tem. Vamo juntas nessa ❤️
Cristal, minha filha linda! Que emoção ler os seus textos. Esse seu dom me encanta - escreve lindamente! Saiba que sempre estarei ao seu lado. ❤🌹