Quanto tempo dura um objeto?
Ou: um ode aos objetos, meu estudo de caso preferido (mal de ser designer talvez)
Acho que posso dizer que cheguei a conclusão de que meu trabalho é pensar sobre objetos. O lixo, per se, é basicamente o julgamento de valor sobre um objeto, quando - no caso - consideramos ele sem valor. Eu fiz um vídeo sobre isso, inclusive, começando a olhar quem decide o que é lixo pelo seu significado no dicionário.
Mas se meu trabalho é pensar o valor dos objetos, também é um trabalho que reside basicamente pensar o éthos da sociedade naquele momento, uma vez que o nosso desejo é construído, não é inato (uma ref aqui sobre esse assunto) (eu tô meio abusada botando essas palavras em latim e grego todas assim de cara né rs).
Eu não sei se já falei isso aqui nos textos, mas um dos primeiros posts que fiz na finada (morreu, mas tá mumificada lá) página do Facebook do Um Ano Sem Lixo foi sobre meu celular. Eu tinha um celular de flip, da Samsung, que tinha ganhado de presente quando fiz 15 anos. Não foi um presente fácil, eu tive que convencer minha mãe que valia a pena $ aquele modelo porque ia durar bastante tempo. Depois daquilo, eu nunca tinha tido dinheiro pra trocar de celular por um modelo que comportasse novas tecnologias que iam surgindo o tempo todo. Algumas pessoas já tinham smartphones (que são basicamente todos esses celulares que temos hoje), mas eu ainda usava SMS - e a maioria dos meus amigos também. Muita gente fazia troça do meu celular nos seus - últimos - anos, coisas como “Cristal, por que você não troca logo de celular?” e eu talvez até pudesse ter orçado e feito uma compra de um novo antes, mas eu assumia que não tinha como. Mas eu respondia assim: “Pra quê? Ele funciona ainda!”
Eu comecei a criar as redes do Um Ano Sem Lixo no final de 2014. Quando virou o ano, meu celular começou a ficar doido. Os SMS já não chegavam direito e eu não tava entendendo porque: o celular não tinha o calendário de 2015, ele tava parado no tempo em 2014. Isso aconteceu antes de celulares terem sistema operacionais como hoje, então não dava pra atualizar e isso decretou a morte oficial dele. Eu venci a obsolescência programada, vejam bem haha. Comprei um celular novo - mas usado - num fórum. E cá estamos. Três celulares diferentes depois, porque fui furtada e comecei a trabalhar com internet precisando de celulares potentíssimos, 7 anos depois.
Esses dias, o ator Chris Evans fez um post se despedindo do seu celular dizendo que ia sentir falta do botão e isso gerou um monte de post besta sobre. Mas eu fiquei pensando como é doido que alguém que tem dinheiro pra trocar de celular toda vez que sai um modelo novo e escolher não fazer isso vire uma grande notícia. O que causa espanto é a pessoa não gerar desperdício.
Eu até cometi uma reclamaçãozinha sobre:
Em nota relacionada (à minha fixação por objetos e meu vício em vídeos de limpeza), me apresentaram um canal no youtube que tô completamente fascinada. Eu sei que na internet a gente pode por links pras coisas, mas eu quero descrever primeiro pra vocês: em cada vídeo, os moços do canal vão lavar um carro antigo, de certa forma abandonado, que tá guardado há 30 ou 40 anos, porque normalmente o dono quer vendê-lo. Tem também quem chame eles pra fazer uma surpresa pro dono do carro (pai, avô).
Eu gostei também desse canal porque eles contam a história de como aquele carro foi parar naquela garagem por 40 anos. E também falam da história da própria produção do carro (gosto de carro especificamente? não. sou curiosa e gosto desses fatos aleatórios sobre as coisas? sim).
Duas coisas me impressionaram bastante vendo esses vídeos: a primeira é como os carros funcionam mesmo depois de tanto tempo parados. Eles simplesmente precisam de uma que outra coisa (limpeza, lubrificação) e dão a partida. Puf! A segunda é como apenas uma limpeza seja capaz de transformar completamente aquele objeto. Ele vai de um carro abandonado, que parece lixo, para um carro vintage lindo. Risos nervosos. Sério, veja aqui.
Mas tem uma coisa que me intriga nessas histórias que é a manutenção daquele objeto na vida daquelas pessoas. Por que não se livrar? Por que não usar? Por que demorar tanto tempo pra fazer algo sobre? Tudo bem que eu própria que vos falo fiz um texto que basicamente discorro sobre minha dificuldade de me desfazer das coisas. Mas acho um carro tão… grande. Ok, eu não tô fazendo sentido.
Sempre penso em obsolescência (programada ou não) e quanto tempo de “vida útil” os objetos têm quando vejo esse tipo de vídeo que traz objetos antigos “voltando à vida”. Tem um, de uma restauração de uma motocicleta, que fiquei tão hipnotizada assistindo que cito vez ou outra em conversas.
Se o desejo pelos objetos é definido culturalmente, por uma sociedade, podemos pensar que o fim do desejo também o é. Mas quem define quando acaba esse desejo? Quem define quando acaba a vida útil de um objeto?
“Gosto” de olhar pras coisas e analisar como as marcas foram tornando tudo de péssima qualidade, aumentando seu desgaste; inviabilizando seu conserto seja por não disponibilizar peças seja por tornar o conserto até inviável mesmo no jeito que o produto é produzido; não oferecendo suporte pra equipamentos antigos como é o caso dos celulares, por exemplo.
No livro Resista: Não Faça Nada, da Jenny Odell, ela cita um trabalho que ela fez que chama “The Bureau Of Suspended Objects” (algo como “o escritório dos objetos suspensos”, sendo que no dicionário Oxford, a palavra bureau tem uma definição que diz assim: “um escritório ou organização que fornece informação em um tema particular”). O que ela fez nesse trabalho foi pegar objetos que seriam descartados, criar uma exposição deles em uma estante e pesquisar informações sobre sua procedência.
Isso me lembrou uma palavra do “dicionário do Antropoceno” do The Bureau of Linguistic Reality que foi inclusive enviada pela Jenny (Nesta Casa Servimos à Jenny Odell, ok??) que fala dessa angústia de descobrir a origem dos objetos:
A palavra é: tralfamidorificação. E o verbete diz (em tradução livre minha do inglês e resumido): conceito inspirado na raça alienígena fictícia do Kurt Vonnegut, os Tralfamadorianos (que podem olhar um objeto e conhecer seu passado e seu futuro). A Tralfamidorificação é a experiência de estar superinformado sobre a linha de produção dos materiais ou sobre os sistemas de gestão de resíduo pelos quais este objeto acabará passando. A tralfamidorificação é uma experiência desorientadora na qual o objeto se torna um nó em uma rede.
(eu falo disso no post acima, apesar da foto não parecer que falarei disso)
No livro, ela fala que “parte da razão pela qual eu trabalho desse jeito [usando objetos que já existem] é porque eu acho coisas que já existem infinitamente mais interessantes que qualquer coisa que eu pudesse criar”. Ela também fala uma coisa que eu repito no meu vídeo sobre quem decide o que é o lixo: que o contexto é o que muda o valor do objeto. Eu cito isso falando pra você pensar em uma garrafa de água em cima de uma mesa e dentro de uma lixeira: é o mesmo objeto, o que muda é o contexto. É praticamente o mesmo efeito de contemplação que essa exposição faz a gente ter: são objetos expostos em uma estante, que nada se parecem com lixo, mas que foram retirados de uma pilha de descarte.
Nessa entrevista sobre esse trabalho, Jenny aponta duas coisas que penso bastante também: a primeira é sobre a arbitrariedade na escolha das pessoas pra definir o que é lixo pra elas e a segunda é como ela pensa que esse trabalho (que ela mesma diz que acha pequeno e que parece insignificante) de entender melhor os objetos, cuidar deles, saber como consertá-los e de sua origem poderia ajudar nossa relação com a geração de lixo.
Eu gosto que as coisas durem. E que elas acabem, eu gosto de usar tudo até o fim. Eu inclusive cometi um post meio poético - meio besta sobre isso aqui:
Mas eu detesto muito quando as coisas estragam antes da hora. Mas que hora é essa, afinal? Eu ainda não sei responder direito isso, mas imagino que seja a hora que marca no relógio depois de muitos usos com cuidado, alguns sem cuidado algum, algum tempo parado, o karma da produção batendo o karma de uso e descarte.
Mas eu também acho que hoje a gente quer duas coisas impossíveis ao mesmo tempo: que as coisas durem pra sempre e ao mesmo tempo, que elas sejam descartáveis pra ter sempre coisas novas.
Talvez, como diz a Jenny, se a gente aprendesse a cuidar, a gente teria mais tempo com mais qualidade e sentiria menos necessidade de trocar nossos objetos de desejo. No fim, quem tem razão é a Marie Kondo, que diz pra gente pegar um objeto por vez na mão, olhar pra ele e avaliar se ele nos traz algum tipo de alegria ou felicidade.
Talvez, também, a gente possa se apegar MAIS aos objetos, diferente do que dizem, já que eles significam tantas coisas. Ao invés de se desapegar, de não dar importância, fazer justamente o contrário: dar muito valor, cuidar com cuidado, reparar, olhar feliz pras coisas que nos cercam – mas não deixar que elas nos sufoquem. Talvez o problema não seja se apegar, mas justamente desapegar de tudo, tratar tudo como descartável. Talvez, se a gente fizer isso, os objetos durem mais.
Ameeeeei essa news!
Concordo muito com a ideia de se apegar, de significar algumas coisas. Me dá aflição a imposição do desapego como se eu morasse em uma casa descartável e sem memória. O quanto o desapego pode ser capitalista, levando a substituir tudo o que tem de tempos em tempos.
Acho que o problema (nesse tema e outros tantos) é que as pessoas andam muito radicais e literais - tudo ou nada, ou desapega de tudo e mora num vazio ou acumula cinzeiros antigos num mausoléu, apegado a coisas que nem se vê no meio da bagunça.
Sou bem Marie Kondo, e o critério de trazer alegria passou a ser super importante pra mim. Beijos e obrigada por essa reflexão!
Que newsletter! ♥
Confesso que assino várias achando que o assunto me interessa e acaba que perco o interesse ou não presto a atenção que deveria, mas quando chega o cuca fresca eu sempre reservo um tempo para ler porque sempre tem temas tão pertinentes e com uma abordagem tão tranquila! Gosto como tu traz as reflexões sem trazer tbm a culpa que geralmente acompanha.
Então, como uma alma curiosa eu sempre olho para um objeto de desejo e penso: Será que eu consigo fazer? Ou tento traduzir aquele desejo para a minha realidade com os meios possíveis e isso - o ato de muitas vezes tentar criar e falhar - me criou todo um senso de valorização da obra humana. E um pouco de conflito: porque eu consigo estimar quanto tempo da vida de alguém aquilo levou (ou deveria ter levado) para ser produzido, quanto de material foi gasto e uma estimativa de valores e a conta nunca fecha, tanto no quanto deveria custar quanto no que eu posso pagar.
Acredito muito que o apego (apego, veja bem, não dependência) as coisas é um hábito que poderia revolucionar o ciclo de vida dos objetos, isso e a calma. Calma para saber que as coisas não precisam entrar na nossa vida para ontem, que a gente sobreviveu até ontem sem aquilo tbm podemos sobreviver até ele se materializar. E amor, porque quem ama cuida.