Se permitir desistir
Ou: desfazendo a pilha-eterna-de-uma-mente-sem-lembranças de resíduos variados que preciso descobrir onde descarta & levar até lá
Abri a portinha do armário do banheiro e, enquanto pegava um hidratante pra passar no rosto, vi lá no fundo outros três que tô fingindo há um tempo que vou usar até o fim pra não desperdiçar. Respirei fundo e pensei “Foda-se, vou jogar isso fora. Essa vitamina C me deu espinha. Esse creme deve estar vencido. Esse protetor é oleoso e eu odeio usar.” Me deu um pouco de paz porque já vão muitos meses, talvez um ano ou mais que esses três ficam ali atrás, escondidos, tentando ser vistos e lembrados e seguindo sendo rejeitados.
Se permitir desistir. Foi o que pensei na sequência. É algo que tenho pensado bastante desde que decidi não viver mais uma vida lixo zero, acabar com o uma vida sem lixo e tudo o que tem acontecido nos últimos anos por aqui *aponta pra si mesma*. Porque… o que é jogar algo fora se não desistir daquilo?
Eu não sou boa em desistir nem jogar as coisas fora.
Outro dia fui procurar fotos antigas pro aniversário da minha irmã mais nova porque achava que tinha uma dela bem bebê e acabei vendo toooooodas as fotos da pasta do HD externo. Caí numa que aparece a gata Nina, bem jovenzinha e, no fundo, uma caixa cheia de roupas pra doar e outra cheia de tralhas que eu não sabia o que fazer. Morava numa kitnet e sempre tinha algum canto cheio de tralhas assim, que eu não queria jogar fora. Nesse momento mesmo, eu falo do meu escritório onde tem duas caixas com roupas pra doar ou jogar fora, ou seja, sigo com esse problema.
Mas veja bem, senti que comecei a melhorar desse problema porque comecei a me permitir desistir das coisas. Em parte acho que é um pouco aceitar o tamanho que tenho, ou seja, saber que não tenho como dar conta de resolver todos os problemas de todos os objetos que chegam até mim. Em outra parte eu não sei.
Desde que eu comecei a ter autorização (de mim mesma) pra produzir lixo, eu não comecei a produzir lixo como se não houvesse amanhã, eu apenas comecei a fazer limpas em todos os cantos da minha casa. E sentir menos culpa. Mas esse processo de limpeza tem sido de tirar as coisas paradas e resolver elas. Invariavelmente a gente sempre encontra o que não quer no meio das coisas que quer.
Enquanto matutava como acabar esse texto, peguei um livrinho do Byung Chul-Han pra ler que tinha até esquecido que tinha comprado, o “Favor fechar os olhos - Em busca de um outro tempo”. Aí me deparo com ele falando assim:
“Em oposição à memória, que aponta para uma estrutura narrativa, a memória virtual é sem história, ou seja, sem conclusão. Ela é meramente aditiva. A memória é, hoje, desnarrativizada, tornando-se um amontoado de lixo e de dados, um “depósito de tralhas” (Paul Virilio), que está inteiramente entupido com todo tipo possível de imagens e símbolos desgastados, inteiramente desordenados e mal adquiridos. No depósito de tralhas, as coisas estão meramente uma ao lado da outra. Elas não estão em camadas. Por isso, falta ao depósito de tralhas toda história, ou seja, o sentido. O depósito de tralhas não pode nem se lembrar nem esquecer.”
– Byung Chul-Han em Favor fechar os olhos
Se permitir desistir das coisas tem sido um processo interessante porque, acho que o principal sentimento sobre isso tudo tem sido: assumir que não tenho controle e não sou tão importante assim.
No primeiro texto da Cuca Fresca há dois (!) anos, que eu falo como eu gostaria de “ter uma coisa só” de cada coisa, eu citei que tinha uma ABRE ASPAS “pilha-eterna-de-uma-mente-sem-lembranças de resíduos variados que preciso descobrir onde descarta & levar até lá” FECHA ASPAS. Demorou tudo isso pra eu começar a desfazer essas pilhas. Se o depósito de tralhas é a falta de sentido, será que o acúmulo de objetos que nos circunda não é o sujeito fazendo sua elaboração própria de sentido, de alguma maneira?
Tem um trecho do A Cidade Solitária que a Olivia Laing fala:
“É comum que as pessoas que acumulam sejam socialmente retraídas. Às vezes, a acumulação causa isolamento e, outras, é um paliativo para a solidão, uma maneira de confortar a si mesmo. Nem todo mundo é suscetível à companhia de objetos; ao desejo de guardá-los e ordená-los; a usá-los como barricadas ou brincar para frente e para trás entre expulsão e retenção.”
Li de novo agora, relendo uns textos que publiquei aqui, e pensei que sim, essas coisas eram uma proteção que eu colocava ao meu redor. Ou: era eu fazendo sentido através desses objetos, de uma certa maneira.
Veja bem, outro dia tava pensando que eu acho que agora, que eu “não vivo mais uma vida lixo zero” tô produzindo menos lixo que quando eu “vivia uma vida lixo zero” ali nos últimos meses antes de assumir isso. Tenho a sensação que isso parece acontecer por diversos motivos, mas um deles é justamente tentar controlar menos as coisas e buscar menos a perfeição.
Antes eu tentava achar um creme pro cabelo, por exemplo, perfeito nas características teóricas: sustentável, sem embalagem, natural, com certificação, vegano, etc. e acabava esquecendo ou ligando pouco pras características que eu, como pessoa, ia me importar mais na hora de usar: o cheiro, o efeito, a facilidade de usar, como meu cabelo ficava. Isso fazia com que eu me frustrasse bastante, porque eu acabava não gostando de uma coisa e abandonando ela. Mas não desistindo. Ao invés de assumir que eu não ia usar e fazer algo sobre (podia ser jogar fora, podia ser oferecer pra algum amigo, sei lá) eu deixava o creme guardado num canto do armário por meses ou anos até que, um dia: puf! Lembrava dele. Mas aí já era tarde demais, ele tinha estragado.
Quando eu passei a focar mais em gostar MUITO das coisas que eu tenho (e eu digo absolutamente qualquer coisa aqui, de panelas a cremes, de sapatos a tapetes) pra aproveitar MUITO tudo e ficar feliz SEMPRE que uso elas, tudo mudou.
É difícil largar mão de controlar tudo o que veio antes do produto estar ali na sua frente e de tudo o que vem depois? Muito. São anos de terapia pra chegar nesse estágio, com certeza. E ainda me sinto uma fraude, uma hipócrita, uma mentirosa, uma falsa em ignorar a composição ou a embalagem ou outras coisas que eu olhava com uma lupa antes.
Mas assim: me dei conta recentemente que esse era um grande sintoma que eu tinha transposto pro Uma Vida Sem Lixo. Eu sempre soube que ele era um projeto de enorme significância pra mim como pessoa, era um projeto-quase-que-artístico antes de mais nada, era um jeito de manifestar as coisas que tavam dentro de mim mesmo, de trabalhar elas. Mas aos poucos fui entendendo tudo o que ele significava e tudo o que eu tinha colocado ali. E a resposta é: eu me coloquei inteira. 100%.
Não porque eu me dedicava 100% do tempo, mas porque absolutamente tudo o que tava ali era eu, Cristal. Só uma pessoa extremamente controladora pensaria que seria uma ótima ideia parar de produzir lixo. Só uma pessoa neurótica e obsessiva teria a tenacidade de ler nas entrelinhas de TUDO pra aprender química, fazer receitas, ler rótulos, conversar com especialistas, ler artigos científicos e por tudo isso a prova. Só uma pessoa que tinha criado pra si um jeito de viver que era sendo rígida, criando regras e métodos, controlando e restringindo *tudo* conseguiria achar tão fácil abdicar de desejar tudo por um período.
Quando eu falo isso eu tô dizendo que esse foi o recurso psíquico que eu criei pra lidar com a minha vida, especialmente na infância, por causa da minha vida. Eu criei esse recurso pra evitar o sofrimento, mas em algum ponto, analisando muito o que faço e quem eu sou em terapia, desvelei alguns sofrimentos e foi mais fácil viver. Então esse sintoma de ser extremamente controladora deixou de ser necessário e, pelo contrário, começou a me gerar sofrimento.
Eu entendo isso porque né, sou humana e é humanamente impossível permanecer parada no tempo, nas convicções, nos gostos, nas atitudes, mesmo que isso implique entrar em incoerência em certas práticas versus o que acredito e o que tenho como valor pro mundo. Mas que tá tudo certo.
Me permitir desistir, em outras palavras, é me permitir deixar de ser tão controladora. É me permitir fazer sem saber se vai dar certo ou errado, sabendo que se der errado, tá tudo bem também.
Voltando ao Han, em “Favor fechar os olhos” ele traz uma dificuldade que o nosso tempo moderno tem de concluir, de fechar as coisas, de terminar as narrativas. É na primeira página que ele traz esse conceito:
“Tem-se uma conclusão quando o início e o fim do processo formam um conjunto dotado de sentido, uma unidade dotada de sentido, quando eles se prendem um no outro. Assim, a narrativa é uma conclusão.”
Fico pensando muito ainda nisso porque, como eu disse, esse projeto sempre foi uma expressão de mim mesma, e não só um instagram “pra ficar famosa” ou um blog “pra ganhar dinheiro”. Nunca tive isso como objetivo.
Achei engraçado ler esse livro do Han porque pensei como me angustiava eu não dar uma conclusão, um final do Uma Vida Sem Lixo e como foi importante ter feito isso. Ele ainda existe, mas agora ele é um projeto dotado de sentido, com início e fim. E, pra mim, esse processo que busquei realizar também teve seu fim.
Outro dia fiz uma limpa no banheiro e juntei dezenas de embalagens de produtos pela metade, finalizados ou cheios mas vencidos e separei pra jogar fora. Dias depois, finalmente enchi sacolas de roupas pra levar doar. Quando fui, finalmente, dar uma arrumada no escritório, lembrei que fiz um móvel justamente pra acumular lixos de maneira mais organizada. De fato, grande parte do que tava ali guardado era lixo: caixas de papelão que guardo para o caso de precisar mandar algo pelos correios; embalagens vazias para descartar corretamente; recebidos que fico tentando usar ou dar para alguém que vá fazê-lo. Fiz fotos de um cabideiro e um trampolim que tava ansiosa pra passar pra alguém e dois amigos se interessaram. Vendi o celular antigo.
De alguma maneira, dessa vez, eu não sofri ao desistir desses objetos. Talvez seja ter aceitado que não tenho como controlar a cadeia de reciclagem e se eles vão, de fato, ser reciclados. Talvez seja um jeito de andar menos apertando a mão, menos mordendo e travando a mandíbula e menos tensionando querendo segurar tudo.
“– Bem, a vida é isso, já dizia Sócrates – respondeu Clara. – Você conhece a história da morte de Sócrates, não? Ele havia sido condenado a se suicidar ao amanhecer, bebendo cicuta. Passou sua última noite acompanhado de amigos e discípulos. Porém, em vez de falar com eles, pôs-se a aprender uma melodia muito difícil para tocar na flauta. Desconcertados, seus seguidores lhe perguntaram: “Mestre, porque gastar suas últimas horas aprendendo esta canção tão complicada, se a cicuta o aguarda ao amanhecer?”. E Sócrates respondeu: “Para sabê-la antes de morrer”. A vida é isso, Pablo: tudo o que sabemos e desfrutamos, tudo o que somos desaparecerá com a morte. E dá na mesma aprender a melodia daqui a dez anos ou dez minutos antes do fim. O fim chegará e apagará tudo. Mas, enquanto não chega, é isso o que somos.”
- do livro A Boa Sorte, da Rosa Montero
Tenho observado um movimento parecido com esse meu por parte de outras pessoas que falavam, tentavam ou viviam uma vida zero lixo ou minimalista (entre outros). A própria Marie Kondo disse que ter uma casa impecável não era mais a sua prioridade, uns dois anos atrás. Mudanças de rotina ou de estrutura de vida como ter um filho (não é o meu caso!!!) ou fazer faculdade (meu caso!!) podem fazer a gente refazer nossas prioridades.
Recomendei outro dia o vídeo do Matt sobre ser minimalista com um bebê e dá um certo gostinho ver que não, eles não conseguiram ter 5 itens apenas porque o bebê precisa de mais de *cem itens novos* – mesmo eles sendo super restritos. Eles mostram uma que outra solução pra serem bastante econômicos em número de objetos, mas claramente eles se permitiram desistir da ideia de perfeição também. Outro criador que fala quase a mesma coisa e também porque teve filho é o Levi do FutureProof. No caso dele, gosto mais da honestidade em dizer que alguns valores que ele aprendeu com ambos os movimentos permanecem, mas que ele não segue mais tudo a risca.
Aliás, acho que o que fica é justamente o que aprendemos com esses movimentos que, até o capitalismo fazer eles próprios serem produtos, eles são bastante anticapitalistas na sua gênese. Não comprar coisas, ter poucas coisas, fazer suas receitas em casa, consertar antes de comprar são todas coisas que travam a roda do mundo como a gente conhece.
Sinto um pouco de vergonha toda vez que eu desço com um saco de lixo no meu condomínio. Muito antes do UmaVidaSemLixo eu já sentia isso. Enquanto descia com algumas caixas ou outras coisas outro dia fiquei tentando entender esse sentimento e lembrei desse texto. Me permitir desistir também é um pouco me permitir jogar as coisas fora sem sentir vergonha. Acho que minha vergonha era de pensar que eu não dei conta de resolver aqueles objetos todos. Que eu não fui capaz de controlar todos. os. mínimos. detalhes. da. vida. daquele. objeto.
Tenho lidado de uma forma um pouco menos transtornada com esse processo de jogar coisas no lixo. Ainda me incomoda? Muito. Eu detesto jogar coisas fora.
Beijos,
Cristal Muniz
Cristal, te ver desistir de ter uma vida sem lixo com toda essa clareza foi uma das coisas mais belas que já vi na internet.
é muito bom acompanhar esse desenvolvimento das tuas reflexões depois de todas as experiências sem lixo.
obrigada pelo texto :)