Eu não vivo mais uma vida lixo zero
Mas isso não significa que eu fracassei ou que eu falhei
E também não significa que agora eu sou uma pessoa doida que compra tudo descartável, calma. Eu vou explicar.
Há uns meses atrás, encontrei umas pessoas conhecidas mas que não sou amiga nem mantenho contato próximo num rolê na rua. Na conversa, comentei que já tinha sido reconhecida umas três vezes naquele dia e era, justamente, o dia que tava bebendo com um copo descartável porque tinha esquecido o meu em casa. E, obviamente, tava meio #chateada com o fato.
Uma dessas pessoas me perguntou, meio com dúvida: “Ué, mas você ainda faz isso? Achei que era um projeto de um tempo, nunca imaginaria que você seguiria fazendo”.
Isso me deixou pensando por muito tempo, porque muita gente já me falou coisas parecidas. Ter escolhido viver uma vida lixo zero em 2015 foi um propósito de desafio, de uma tarefa do momento. Eu segui fazendo, segui com as restrições e até aumentei algumas até um ponto que dei uma explodida porque não tava mais conseguindo.
Tem uma coisa que eu sempre disse pra todo mundo que chegou pra conversar comigo dizendo que não conseguia fazer alguma coisa que gerava lixo, que é: faz o que você consegue agora.
O espaço-tempo é muito importante porque se a gente não respeita nosso contexto, nosso tempo, a gente se sobrecarrega. E isso vale pra qualquer coisa. Eu decidi fazer faculdade e, desde que começaram as aulas presenciais, nesse ano de 2022, minha rotina tá uma loucura. Eu passei de 24h por dia, 7 dias na semana, em casa pra: nunca estar em casa, sempre estar na faculdade.
Quando eu decidi me propor o desafio de viver sem produzir lixo e a maioria dos anos que se passaram desde então eu trabalhei de casa. Em dado momento, esse desafio virou ele próprio meu trabalho, o que otimizava tudo o que eu precisava fazer, porque eu podia gravar apenas estar vivendo e gerar conteúdo ao mesmo tempo.
Hoje, me falta tempo.
A maioria das decisões que geram menos ou nenhum lixo estão mantidas, na verdade. Eu não vou trocar o sabão líquido natural que amo, nem os xampus sólidos nem começar a comprar tudo com embalagem e não separar mais o lixo. Mas a questão é que não consigo mais me considerar lixo zero, porque eu evito produzir lixo, sim, mas também (número 1): entendo hoje que o lixo visível não é o maior dos problemas bem como não tenho como fazer certos esforços pra esses resultados.
Vou dar um exemplo simples: eu não tenho carro. Eu ando de ônibus. Levo 2h por dia no deslocamento casa-faculdade. Aperto como dá academia, trabalhar, estudar além das aulas, cuidar da casa, de mim, lazer, ver os amigos e cuidar dos pets no tempo que sobra. Conheço dois lugares que vendem café a granel aqui em Floripa. Não tenho como ir até esses lugares só pra isso, eles não fazem parte da minha rota e eu perderia mais de 1h pra fazer isso. E aí a gente pode adicionar mais um monte de coisas que adicionariam 1h na semana. E por isso, não considero que sou mais lixo zero, sou evita-lixo. Risos.
Tem outros exemplos como ter que comprar no primeiro lugar algo que acabou em casa porque não vou ter tempo de ir em outro; ter que comprar coisas online pra entregarem aqui em casa porque vai ser mais rápido; não ter forças pra cozinhar e pedir delivery; estar tão cansada e esquecer de tudo na bolsa da faculdade porque o estresse fez eu lembrar só do jaleco que era obrigatório pra aula prática, etc etc.
Esses exemplos dão conta de uma reorganização que tive que fazer da minha vida, onde a prioridade foi por algum tempo não produzir lixo e agora, não tenho como manter isso. Não consigo me considerar lixo zero se isso não é minha prioridade no momento (número 2). A bem da verdade que, desde 2020, minha prioridade tem sido sobreviver, não surtar, me manter em pé e funcionando. Em 2022 minha prioridade foi fruir, me soltar e aproveitar tudo que tava preso havia um tempão. Pra esse ano, minha prioridade é o equilíbrio, com foco em mim: na minha saúde, no meu bem estar, na minha felicidade.
Eu venho pensando (e falando) sobre o que é sustentabilidade pra mim, em um aspecto maior que só o que é ser lixo zero. Ser lixo zero era uma demanda da Cristal de 23 anos, de 2014. A Cristal de 31 anos, de 2023, entende que sustentabilidade é mais que só o que tem na nossa lixeira - ainda que não fique enchendo ela como se não houvesse amanhã também.
Com tanto que eu aprendi ao longo desses anos, faz sentido também que o lixo da minha lixeira não seja mais minha prioridade, porque com tanto que estudei, compartilhei com vocês, que pensei, o lixo invisível passou a me incomodar profundamente. Esse é um “conceito” que criei pra coisas que, pelo seu processo de produção, geram uma quantidade enorme de resíduos mas que aparecem pra gente como soluções – normalmente tecnológicas – pra falsos problemas:
“E aí, um exemplo que eu penso muito quando me perguntam, é sobre a diferença dum livro físico pra um livro digital. O impacto de um livro é enorme, claro, porque a gente precisa de papel, tinta, distribuição. Mas a gente tem uma visão de que o livro digital, a partir de um leitor ou de um computador, é muito melhor só porque não gera papel. Só que: qual que é o impacto pra fazer um eletrônico? Tanta coisa: um montão de metais pesados, componentes eletrônicos, lítio pra bateria, a forma de extração disso (normalmente mineração!) & a energia de processamento de dados na nuvem (isso é MUITO impactante), energia elétrica pra manter as baterias e por aí vai.”
A pergunta mais difícil que alguém pode me fazer é: “o que é mais sustentável, x ou y?” É virtualmente impossível pra mim responder isso pra quase tudo. As coisas não são preto-no-branco. Se a gente para de usar canudo plástico e troca todos por canudos de inox, precisa de mineração pra fazer esses. Se troca todas as sacolas plásticas por de papel, precisa de muita floresta artificial pra produzir tanto papel. Sabe? Tem muita questão pra cada escolha e, eu, no meu papel de mostrar as soluções mais sustentáveis comecei a me sentir insegura de dar certezas pra vocês. Prefiro dar dúvidas.
É muito mais fácil dar certezas, vejam bem. Você compartilha uma coisa dizendo o que é certo e o que é errado. A gente ama saber o que tá certo e o que tá errado, assim, uma “dica” simples. Ninguém gosta de ser questionado, de sentir aquele gosto ruim de desconforto quando suas certezas parecem estremecidas. Mas é o que é.
Com a pandemia, me aproximei muito mais do debate acerca da ciência e das evidências científicas. Eu sempre fui muito curiosa e preocupada com passar a melhor informação e a mais responsável e quanto mais a gente pesquisa, mais dúvida fica em certos temas. Meu problema é que não tenho mais tanta certeza pra dizer “olha, essa é a melhor opção em todos os cenários”, eu quero sempre escrever “olha, essa é a opção que mais gosto no meu cenário atual que é de x, y e z, mas talvez se você tiver no cenário u, i, o seja o caso de usar tal opção”. Mas aí vocês percebem que 1) é meio impossível eu abarcar todos os cenários na sociedade e que 2) eu não tenho como decidir qual a melhor opção pra *vocês*. Fora que eu ia soar muito chata em todo post kkk.
Sei que soa meio confuso, mas prometo que em breve farei minha listinha de diretrizes de sustentabilidade que sigo e pratico (no momento).
Comentei com uma amiga que eu ia escrever esse texto e, por dias, fiquei travada andando de um lado pro outro em casa, com medo de sentar aqui e escrever o resto (eu já tinha começado) desse comunicado que é, no fim das contas, uma prestação de contas. “Mas você acha que precisa?” essa minha amiga me perguntou. Precisa.
Ser uma pessoa pública e que fala disso, além de sempre ter sido muito honesta e franca sobre meus processos, me fez sentir a necessidade de justificar isso. Não é sobre falhar, errar, fracassar, é sobre mudar.
Eu vim ensaiando essa mudança – talvez num processo pessoal de admitir que ela já tinha acontecido – e vim falando nisso como no texto “O que mudou depois que tudo mudou” e no “Quando é mais difícil não produzir lixo?”. Se você não leu, recomendo que leia pra entender melhor mais detalhes.
Eu queria vir aqui explicar isso porque, também, vou continuar falando menos de produzir menos lixo nas minhas redes. Eu já passei anos falando, já fiz um livro que é um guia básico do que acho que todo mundo precisa saber pra reduzir quase totalmente sua produção de lixo e, nesses anos, diversas pessoas começaram a falar disso também – o que significa pra mim que minha mensagem tá passada <3. Tenho buscado e vou continuar essa busca trabalhando pensando sustentabilidade a partir de novas diretrizes, que compartilho com vocês no próximo email.
Um beijo,
Cristal Muniz
Que lindo é ler um texto sobre estar em movimento! Partilhar isso requer muita coragem, e, como escreveu Julia Panadés "é inevitável que se perca velocidade ao abrir a curva / o contorno é terno / a ternura é lenta". valeu, cristal!
Adorei! Especialmente a parte sobre questionar certezas e soluções rápidas. Todo mundo ama dicas de 10 coisas, mas a vida nunca é tão simples. Acho que é preciso se permitir ser incoerente ou se permitir recalcular rotas, nos questionar e rever nossos limites e decisões. E seu texto é lindamente franco. Beijos ♥️