Saio de casa e sinto o tapa na cara do vento depois de passar o último prédio do meu condomínio. Entrou o vento sul e não percebi. Preciso voltar e trocar de roupa.
O cheiro de praia no ar mais forte que normalmente. As gotas que batem na cara com o vento e que tenho lá minhas dúvidas se são de chuva ou do mar. O mar encrespado, fazendo barulho, trazendo objetos pra areia em uma praia que não tem onda normalmente. Os gaivotões brincando no céu, planando parados com o vento forte que sopra. As palmeiras totalmente inclinadas pra trás. O cabelo todo na cara em todas as direções. O ponto de ônibus que se treme todo e vira-e-mexe precisa trocar alguma peça que é destruída pelo vento forte.
Minha casa é virada pro norte, então só sei que entrou o vento sul quando saio dela. Ou se olhar as árvores do condomínio tremelicando pra trás, com o vento.
Sei sempre o que esperar do clima da minha cidade, ainda que tenha dias que faça sol, chuva, frio e calor quase ao mesmo tempo. Eu sei pela direção do vento que tá ventando. Eu escolho a praia pra ir com base no vento. Tem outros sinais como a inclinação do sol que muda ao longo do ano. O horário que o sol nasce. O horário que o sol se põe. Moro aqui tempo suficiente pra saber que no outono o sol entra às 16h na minha sala. Que no inverno o sol entra no quarto. Que no verão chove muito até fevereiro. Que meu cabelo fica mais liso em dias de vento sul. Que o vento sul limpa o mar e que o norte/nordeste refresca a casa e dá dias perfeitos de praia.


“A linguagem de uma cidade é o clima”. Foi o que pensei durante uns dias que não sabia dizer se era frio ou quente, primavera ou verão. Pensei nisso durante as semanas que a fumaça dos incêndios da Amazônia chegaram até Floripa e mantiveram uma áurea esquisita de sol vermelho, dor de garganta, alergia, um fog que não era da umidade das nuvens baixas, uma coisa persistente esquisita que não fazia sentido.
Perder essa sensação de que conheço o clima da minha cidade, que sei navegá-lo, me deixou incomodada. Se a crise climática tem mudado o clima, como vamos continuar entendendo nossas linguagens? Se sou quem eu sou também a partir do lugar que habito, o que acontece comigo se o lugar que habito deixa de sê-lo?
“O acesso à essência de uma coisa nos advém da linguagem. Isso só acontece, porém, quando prestamos atenção ao vigor próprio da linguagem. Enquanto essa atenção não se dá, desenfreiam-se palavras, escritos, programas, numa avalanche sem fim. O homem se comporta como se ele fosse criador e senhor da linguagem, ao passo que ela permanece sendo a senhora do homem. Talvez seja o modo de o homem lidar com esse assenhoramento que impele o seu ser para a via da estranheza. É salutar o cuidado com o dizer. Mas esse cuidado é em vão se a linguagem continuar apenas a nos servir como um meio de expressão. Dentre todos os apelos que nos falam e que nós homens podemos a partir de nós mesmos contribuir para se deixar dizer, a linguagem é o mais elevado e sempre o primeiro.” 1
Não só tem muito vento em Floripa, como a cidade é muito sensível aos ventos, até porque somos uma ilha. Minha referência de praia é aqui, onde aprendi a andar (literalmente, na praia Daniela) e onde paro e olho o mar pra entender como está a série de ondas antes de mergulhar quando vou para a praia.
Entendi que minha referência não era universal faz tempo, claro, não sou tansa, mas uns meses atrás estava no Rio de Janeiro, namorando a ideia de morar lá e me senti perdida. Levei um corta vento porque, afinal, praia sempre pode dar frio por causa do vento. Achei que precisava me proteger. Mas não no Rio. Era agosto e tinha praia. Não entendi como funcionava o mar na praia e preferi não entrar, achei perigoso.
Quem eu seria se eu não precisasse pensar em levar um corta vento para não passar frio mesmo no verão? Quem eu seria se não tivesse vento sul? Existe sim frente fria, ela também chega no Rio, mas não é a mesma coisa. Moro de frente pra praia que é virada pro Sul, a frente fria chega em umas 24h do Sul do planeta aqui. Se em Porto Alegre choveu hoje, amanhã chove aqui. É esse tipo de coisa que eu sei. É esse tipo de coisa que olho no mar, no céu, nas árvores, nos animais que habitam minha vizinhança.
“Salvando a terra, acolhendo o céu, aguardando os deuses, conduzindo os mortais, é assim que acontece propriamente um habitar.” 2


Quem eu sou agora, quem eu quero ser agora, quem eu serei agora e no futuro são questões que tem me perturbado porque me encontro numa posição de ser muito ao mesmo tempo. A gente aprende a ser uma coisa só, a ter uma identidade com poucas coisas, mas ninguém explica como ser multi. Não sou composta, como disse o Antônio Augusto aludindo que não tenho um segundo nome como ele, mas sou e estou nesse momento muito complexa. Não composta, mas complexa.
“Mesmo fechando-se "dentro de si mesmos", os mortais não deixam de pertencer à quadratura. Quando nos recolhemos - como se diz - dentro de nós mesmos, é a partir das coisas que chegamos dentro de nós, ou seja, sem abrir mão da de-mora junto às coisas. Mesmo a falta de contato com as coisas, que sucede em estados depressivos, não seria possível se esse estado não continuasse a ser um estado caracteristicamente humano, ou seja, ainda assim uma de-mora junto às coisas. Somente porque essa de-mora determina o ser homem é que as coisas podem não nos tocar e nada nos dizer.
A referência do homem aos lugares e através dos lugares aos espaços repousa no habitar. A relação entre homem e espaço nada mais é do que um habitar pensado de maneira essencial.”3
Sempre que volto de viagem pra casa, sinto o corpo relaxando assim que sinto que tô no ar de Floripa. O cheio do mar, mesmo que sutil. O jeito que o sol brilha. O vento. Sinto no corpo que tô em casa. A única vez que senti que também tava em casa fora daqui foi em Porto - Portugal. Algumas coisas, muito estranhamente, eram parecidas demais com Floripa. Assim, no corpo mesmo.
Outro dia escrevi “Sou nutricionista! E também sou: designer, blogueira, especialista em sustentabilidade, nerd de métodos de organização. Uma mulher que não cansa de ser, em resumo” e passei uns dias pensando como realmente, ser é uma coisa que não me cansa.
“E se o desenraizamento do homem fosse precisamente o fato de o homem não pensar de modo algum a crise habitacional propriamente dita como a crise?
Tão logo, porém, o homem pensa o de-senraizamento, este deixa de ser uma miséria. Rigorosamente pensado e bem resguardado, o desenraizamento é o único apelo que convoca os mortais para um habitar.
De que outro modo, porém, os mortais poderiam corresponder a esse apelo senão tentando, na parte que lhes cabe, conduzir o habitar a partir de si mesmo até a plenitude de sua essência? Isso eles fazem plenamente construindo a partir do habitar e pensando em direção ao habitar.” 4
Parece meio ridículo agora dizer que estive quebrando a cabeça pra entender como conectar o fato de ser nutricionista com meu trabalho com sustentabilidade nesses últimos dez anos. Elas são, em grande parte, a mesmíssima coisa. Às vezes eu só percebo que tô com sede quando saio de casa mesmo. É quase como você viver a vida toda em uma cidade e achar que ela não modifica quem você é. Claro que sim.
Tenho uma rotina ao longo do ano conforme o clima da minha cidade. Desço as roupas de verão e subo as quentinhas, de inverno, logo depois da Páscoa. Faço o inverso normalmente no meio de novembro. Passo vinagre nas paredes de casa porque tudo mofa quando começa a chover sem parar ali por setembro e outubro. Mudo o horário de passear com a Filó pra mais tarde porque o sol tá demorando pra se pôr a partir de outubro. Vou a praia e esqueço que um dia usei calça jeans e pijama comprido por alguns meses do verão. Esqueço que entrei no mar por alguns meses de inverno. Sofro com minha pele seca pelo sol e mar no verão e pelo clima seco e frio no inverno.
Quem eu sou depende dessas movimentações. As coisas que observo, o movimento do mar, os animais que são meus vizinhos, o meu ser-animal que vai e volta, vai e volta, assim como a maré que sobe e desce, sobe e desce.
Fico pensando na possibilidade de ir perdendo, aos poucos, com a intensificação da crise climática, esses marcadores do meu entorno, da minha cidade, de quem eu sou. Eu não me mudei pro Rio de Janeiro, eu ainda sou apenas a Cristal que mora em Florianópolis, não a que mora no Rio de Janeiro. Mas perder de mim quem eu sou porque a cidade começa a perder de si própria sua própria linguagem é um luto que não sabia que precisaria elaborar.
“this dance
is like a weapon
of self defense
against the present
the present tense” 5
para além daqui
🌊
Também puxo conversa no instagram e no tiktok em vídeos e tô querendo estar mais no linkedin pra debater sustentabilidade, nutrição e ideias pra adiar o fim do mundo.
Quer me chamar pra uma palestra ou workshop? Ou me chamar pra um trabalho com alguma marca? Me chama no email cristalmuniz@brunch.ag
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Construir, habitar, pensar [Bauen, Wohnen, Denken]. Martin Heidegger (1951). Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback. Acesso em [https://filosofiaepatrimonio.wordpress.com/wp-content/uploads/2017/03/martin-heidegger-construir-habitar-pensar.pdf]
Idem 1.
Idem 1.
Idem 1.
Present tense, do Radiohead.
Gostei muito da Cristal poética xamânica sendo uma com a natureza. A escrita desta edição está especialmente bonita.
Que escrita mais linda, Cristal. Acho que a gente realmente tem uma relação mais intensa com o vento aqui. Me identifiquei horrores. Já fui a Juliana do Rio de Janeiro por 7 anos e estranhei muitíssimo a falta de chuva, por exemplo. Pra mim é normal virar sapo entre setembro e outubro hahahaha. E agora não tem fumaça de queimada, mas não lembro de um outono tão quente e tão seco. Minha avó sempre lembra que em SC a gente passa a páscoa de casaco, não de regata. Tá tudo muito estranho e me sinto exatamente assim, confusa.